Talvez muitos não saibam, e outros pormenorizem, conforme a conveniência, mas hoje, em julho de 2014, o “Brasil democrático” que pouco tempo atrás comemorava meio século do fim da ditadura civil-militar, tem presos e indiciados políticos. Para citar apenas um exemplo, em Porto Alegre (RS) seis pessoas envolvidas diretamente na construção de lutas populares, em especial àquelas que tocam a pauta do transporte público e o repúdio à realização da Copa do Mundo, estão sendo acusadas por formação de quadrilha.
Anteriormente, a acusação era por formação de milícia, crime típico entre órgãos do Estado, em especial a polícia militar, e que consiste, resumidamente, na criação de organizações paramilitares de extorsão para com a população em troca de serviços, especialmente os de segurança. Curiosamente, desde que a lei que tipifica o crime de formação de milícia fora sancionada (Lei 12.720 de 2012) nenhum policial fora enquadrado a partir desse delito. Pois em Porto Alegre, seis pessoas foram judicialmente apontadas como “milicianos”. Algum tempo depois, a acusação “regrediu” para formação de quadrilha e o processo segue está tramitando no Judiciário. A resposta dos advogados que defendem os diferentes acusados é a mesma: não existem provas reais de tais acusações.
Se por um lado as acusações aos militantes da capital gaúcha ainda tramitam judicialmente, outro caso de bastante repercussão recentemente, e para citar apenas mais um exemplo, trata-se do servidor público e estudante paulista Fábio Hideki Harano, preso na penitenciária de Tremembé (SP) desde 23 de junho. A detenção de Hideki ocorreu em “flagrante” durante ato contra a Copa do Mundo em São Paulo. Entre as acusações estão posse ilegal de explosivo e resistência à prisão, argumentos colocados em xeque por diversas pessoas que acompanhavam Hideki durante a manifestação. Em vídeo, amigos do ativista, entre eles o Padre Julio Lancelloti, afirmam que o flagrante que “justificou” a prisão de Hideki foi absolutamente forjado (veja o vídeo aqui). Hideki teve sua prisão preventiva decretada pelo Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) juntamente com o ativista Rafael Marques Lusvarghi (mesmo ambos sendo réus primários), sob a acusação de que representavam risco à ordem pública. Na última quinta-feira (3), o Superior Tribunal de Justiça (STJ) negou liminar da Defensoria Pública de São Paulo que pedia a liberdade dos dois.
(Des) Tribunal Popular
Baseado em todo esse cenário de indiciamentos e prisões, além de toda a repressão policial, intensificada desde a explosão dos movimentos de junho de 2013, o Bloco de Lutas de Porto Alegre, com o apoio de outros coletivos e entidades, realizou na noite de quinta-feira (3), o “(Des) Tribunal Popular: a criminalização dos movimentos sociais no banco dos réus”. A atividade, realizada no auditório do Cpers Sindicato, é uma resposta nacional a repressão das lutas populares (que também não se trata de uma exclusividade regional) e teve diferentes momentos, de debate a apresentações culturais.
A abertura do evento, por sinal, foi realizada pela apresentação das 'Putinhas Aborteiras', coletivo anarquista e feminista, que apresenta músicas autorais que trazem como temática especialmente críticas ao Estado (e consequentemente à opressão promovida por este), à Igreja e especialmente às opressões que envolvem questões de gênero e sexualidade. A apresentação das Putinhas Aborteiras logo na abertura do “(Des) Tribunal”, por sinal, não foi fruto do acaso. O grupo esteve recentemente em destaque após a divulgação, através das redes sociais, de uma apresentação do grupo na TVE, o que causou revolta de diversos setores conservadores, especialmente da bancada do Partido Progressista na Câmara de Vereadores de Porto Alegre. O fato, inclusive, acabou na demissão de dois funcionários da emissora.
Nessa quinta, a apresentação do coletivo foi intercalada pela leitura de um texto no qual as integrantes do grupo se manifestavam, entre outros, a respeito do acontecimento com a TVE e citavam diversos dados sobre a violência contra mulheres. “Diante disso, não são nossas letras que deveriam causar choque, mas o que denunciamos em nossas letras”, afirmava um trecho da declaração lida em voz alta.
Após a apresentação do grupo, alguns vídeos denunciando a repressão policial e o ataque ao direito de manifestação foram exibidos. Já na sequência da atividade, o microfone esteve aberto a todos que quisessem relatar suas experiências envolvendo a perseguição aos movimentos sociais e outros grupos marginalizados. Por ali passaram representantes do movimento de moradores de rua de Porto Alegre, do setor jurídico do Bloco de Lutas, do movimento quilombola, de sindicatos, de coletivos de juventude, do Comitê Popular da Copa entre outros. Nas falas, uma tônica permeava as diferentes manifestações, e abordava a articulação entre os diversos setores do Estado com o objetivo de reprimir e, em contrapartida, a necessidade de outra articulação, dessa vez da sociedade civil, com o objetivo de denunciar as violações de seus direitos.
Criminalização no banco dos réus
Encerrado o primeiro momento da atividade, foi composta, então, a mesa de debate que deu sequência às discussões. Na coordenação, estavam a arquiteta e integrante do Comitê Popular da Copa, Claudia Favaro, e o professor do curso de Educação Física da Universidade Federal de Rio Grande (Furg), Billy Graeff. Já os debatedores eram o metroviário paulista, demitido na última greve da categoria, Paulo Pasin, o advogado e militante da Frente Quilombola Indígena e Popular, Onir de Araújo, e o integrante da Comissão de Direitos Humanos da Procuradoria Geral do Estado do Rio Grande do Sul, Carlos Cesar D'Elia (mais conhecido por Dr. Vermelho). Além desses, o cartunista Carlos Latuff também compôs a mesa de debates, ilustrando em charges, feitas naquele exato momento, a discussão.
O primeiro a tomar a palavra foi o metroviário paulista, demitido na última greve da categoria, Paulo Pasin. Em sua exposição, Pasin destacou toda a estrutura do Estado voltada especialmente para a repressão aos trabalhadores e suas ferramentas de organização. Essa estrutura, aliás, não é exatamente uma novidade, e sim uma herança que os trabalhadores brasileiros trazem de muito tempo. “A ditadura caiu, mas os pilares do regime seguem até hoje”, destacou. Esse legado, segundo Pasin, está sendo convenientemente casado pela burguesia brasileira ao atual momento do país, com a realização da Copa do Mundo da Fifa, para atacar em diferentes frentes. Além disso, tudo que ocorre desde antes de junho de 2013, mas se intensifica após as grandes manifestações desse período, com a revolta das bases de trabalhadores contra direções sindicais pelegas, por exemplo, promovendo greves que resistem e saem vencedoras. Todos esses fatores aceleram ainda mais a necessidade de ataque por conta dos patrões. Nesse processo entram, por exemplo, as tentativas de acabar com o direito de greve, com o direito a organização sindical, entre outras liberdades democráticas.
Outro ponto que recebeu bastante destaque por parte do metroviário é a necessidade de articulação entre diferentes setores, especialmente entre diferentes categorias, que possam trazer um caráter classista para a resistência contra a criminalização dos que lutam. “O ataque que nós sofremos, no caso os metroviários, que é um ataque ao direito de greve, também ocorreu em outras categorias e tem um fundo. Toda essa questão agora, que nós estamos sentindo, de criminalização, de repressão, é porque o Capital se assustou muito com as mobilizações e sabe que a classe trabalhadora organizada é o inimigo para eles. Por isso a perspectiva deles é tentar isolar e criminalizar o movimento”, aponta Pasin.
Estado Democrático de Direito
A segunda intervenção no debate ficou a cargo do advogado e militante da Frente Quilombola Indígena e Popular, Onir de Araújo, que destacou, especialmente, a insuficiência do Estado em administrar as grandes contradições de um país tão desigual. Nesse sentido, as diferentes instituições e instâncias dos governos cumprem um importante papel de manutenção da ordem estabelecida. “A Polícia Militar tem o papel exclusivo de ser uma tropa colonial de ocupação e contenção”, exemplificou Onir, para ir adiante e apontar o estado democrático de direito como uma evidente estratégia do Estado para iludir os trabalhadores a respeito de suas supostas garantias legais. “O estado democrático de direito sempre foi uma ficção jurídica. Ele não existe na periferia”, apontou. Aliás, a respeito da periferia, Onir destacou ainda o fato de que a repressão policial para os setores historicamente marginalizados não se trata de uma novidade. “O que aconteceu em junho (com a repressão às manifestações) foi que o asfalto começou a experimentar um pouquinho o gosto amargo do que é o estado democrático de direito nas periferias, favelas, quilombos, territórios indígenas”, ressaltou o advogado.
A insuficiência do Estado para dar conta das contradições da sociedade, a resposta através da organização da própria sociedade e, em uma contrarresposta urgente, a articulação do aparato repressivo do Estado para conter os ânimos revoltosos, também foi o eixo da manifestação do Dr. Vermelho, integrante da Comissão de Direitos Humanos da PGE/RS. Bons exemplos disso, segundo Dr. Vermelho, é a quantia crescente de Projetos de Lei que criminalizam as lutas, entre eles, a já amplamente conhecida Lei Antiterrorismo, e a pressa com que se tenta encaminhar essas votações. Para ilustrar um pouco do que representa esse processo legislativo contra os movimentos sociais, o integrante da PGE citou alguns dos artigos da Lei Antiterrorismo, com destaque especial para o que aponta como crime o ato de abrigar terroristas (em um conceito bastante nebuloso do que seriam esses terroristas), que já praticaram ou podem vir a praticar atos de terrorismo, com pena de 4 a 10 anos. Por fim, Dr. Vermelho destacou também o papel estratégico que desempenham os grandes conglomerados midiáticos nesse processo e a resposta necessária que os movimentos devem dar construindo estruturas alternativas de mídia.
Luta que segue
Após as manifestações dos que compunham a mesa, o debate foi aberto para manifestações do público. A partir daí, diversas foram as entidades, organizações e coletivos que tomaram a palavra e manifestaram suas opiniões, na grande maioria dos casos, ressaltando a necessidade de articular uma rede de solidariedade que lute em conjunto contra a criminalização das lutas de Movimentos Sociais e trabalhadores. Essa rede, conforme destacou Claudia Favaro, deve atuar dentro de alguns eixos essenciais para o próximo período, como por exemplo, a necessidade de articular pessoas que estejam ao redor das pautas jurídicas. “Entendendo que o grande legado da Copa para os que lutam é esse aparato repressor, nós precisamos se organizar para enfrentar isso”, apontou.
Nesse mesmo sentido de solidariedade e articulação, outra necessidade evidente é a de dar um caráter classista para a luta contra a criminalização e a repressão, já que essa representa não um ataque individual, conforme destaca a professora da faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e da Seção Sindical do ANDES-SN na UFRGS, Laura Fonseca. “A questão central é compreender a criminalização como uma política de repressão à classe trabalhadora, uma forma dessa nova face da ditadura do Capital de oprimir e tentar encolher a luta da classe trabalhadora. Então, é fundamental que faça solidariedades pontuais, mas que possa enxergar a totalidade. Até porque esse estado de repressão, nós estamos vendo, não vai terminar com a Copa”. Fazendo coro à manifestação da professora, Billy Graeff destacou a importância do movimento docente nesse processo. “Esse é o momento do movimento docente retomar essa pauta, inclusive porque outros sindicatos, assim como o nosso vem sendo judicializado, mas outros vêm sendo com mais força, e nós já enfrentamos em nossa história esse tipo de processo. Então, o movimento docente tem muito a ajudar na construção dessa luta”.
Por fim, Rodrigo Brizolla, integrante do Bloco de Lutas e um dos seis indiciados por formação de quadrilha, aponta um horizonte de muito trabalho e luta. “A gente precisa estabelecer uma rede nacional, que já vem se formulando, mas nós precisamos é intensificar essa atuação, pra gente poder ter um mapeamento em nível nacional. Já se tem um trabalho realizado no sentido de buscar apoio internacional. Que a gente possa estabelecer uma resistência na defesa dos direitos constitucionais, na defesa dos direitos democráticos, que estão sob ameaça, não pela Copa do Mundo, mas pelo legado que isso deixa, pela necessidade que os governantes têm de estabelecer um controle cada vez mais sobre a população”.
Após as intervenções, o “(Des) Tribunal Popular” foi encerrado com a apresentação do rapper Ryan Soares e do cantor Eduardo Solari, que interpretou alguns clássicos da música de luta da América Latina. Entre eles estava, não por coincidência, “Canción con Todos”, de Armando Tejada Gomez, e mundialmente conhecida na voz de Mercedes Sosa, e que por acaso diz: “Todas las voces, todas Todas las manos, todas”.
* Com edição do ANDES-SN
* Foto: Sedufsm - Seção Sindical