Jul
15
2016

Câmara de Niterói exclui referência a debate de gênero e diversidade da escola

Hostilidade marca sessão na Câmara que votou Plano Municipal de Educação, com relatos de violência a manifestantes; referência à debate de gênero e diversidade é excluída
DA REDAÇÃO DA ADUFF
Por Aline Pereira
“Ontem, aprendi muito. Não estou sozinho e sei que a luta não é fácil. Viajo o mundo inteiro, mas é no meu país que sinto que sou oprimido, ofendido e rechaçado. Retrocedemos ao invés de avançar”, diz Bruno Lopes, professor de inglês e espanhol e integrante do Grupo Transdiversidade de Niterói. Ele não esconde a frustração de, na noite dessa quinta-feira (15), os vereadores da cidade terem aprovado o Plano Municipal de Educação (PME) para o decênio 2016/2026, refutando, por 13 votos a cinco e uma abstenção, as recomendações para que se discuta gênero e diversidade no ambiente escolar – o que suscitou polêmica entre a bancada que representa setores mais conservadores da sociedade. Foi aprovada uma emenda substitutiva ao capítulo que tratava do assunto, abordando, de maneira genérica, a questão do preconceito na escola. O texto final ainda está em posse da Secretaria da Mesa Diretora da Câmara Municipal de Niterói e deve ser liberado nos próximos dias.
Para Sérgio Aboud, professor do curso de Educação Física da UFF, essa decisão é problemática, pois não corresponde à realidade do ambiente escolar na contemporaneidade, sobretudo para iniciativas como a da ‘Educação de Jovens e Adultos’. “No EJA, por exemplo, temos uma quantidade significativa de estudantes travestis e transexuais. O que fazer? Não podemos negar essa realidade! Niterói tem uma semana de diversidade, que inclui o debate sobre questão racial e as reivindicações dos portadores de necessidades especiais, assim como o tema da sexualidade. Não poderemos mais trabalhar com esse tipo de concepção?”, questiona o professor, que integra o Conselho LGBT de Niterói e o Grupo de Trabalho Etnia, Gênero e Classe da Aduff-SSind. Para ele, a escola é coparticipativa na educação e criação do sujeito, assim como garantem artigos da Constituição e do Estatuto da Criança e do Adolescente, por exemplo.
Polarização e hostilidade
A sessão reuniu manifestantes a favor e contra que se incentive esse debate nas escolas. “Lamentável estar discutindo esse assunto. Essa é uma questão de foro íntimo e não compete à escola abordá-la. É uma palhaçada!”, disse Nara Seixas, que trabalha na área de saúde, e que acompanhava a sessão na Câmara dos Vereadores. Ela estava à direita do plenário, juntamente com outras pessoas que se posicionavam contra a inclusão de quaisquer emendas que estimulassem o debate sobre gênero nas escolas. À esquerda, militantes de movimentos sociais, sindicatos e parcela de educadores cantavam palavras de ordem clamando por tolerância à diferença. Argumentavam o quanto essa discussão se faz necessária no Brasil – um dos países em que mais se pratica violência contra mulheres e a comunidade LGBT.   “A recomendação para se discutir questão de gênero na escola é justamente para pregar a tolerância entre as diferenças; é refutar o discurso de ódio”, disse o professor Bruno, que esteve no plenário para assistir à sessão. Ele disse à reportagem da Aduff-SSind que foi ameaçado de morte diversas vezes por um senhor. “Tenho 24 anos e, pela primeira vez, tive medo de voltar sozinho para casa”, disse o transexual.
Há relatos de que, enquanto a votação transcorria na Câmara, houve uma agressão, com soco, a uma das manifestantes que assistia à sessão por ter beijado outra moça. Bruna Benevides, em sua página na rede social, disse que “a atitude [é] ignorante e intolerante, reforçando a necessidade de debater esses temas”, escreveu.
De acordo com o jornal ‘O Fluminense’ e com alguns manifestantes, a Guarda Municipal interveio com gás de pimenta.
Retrocesso
Os ânimos também estiveram acirrados no lado de fora da Câmara Municipal, opondo manifestantes pró-diversidade e integrantes do grupo “Movimento Brasil Livre Niterói”. Estes últimos usavam camisas “Bolsonaro Presidente 2018” e adesivos “Menos Marx e Mais Mises” – referências ao filósofo, economista e revolucionário socialista alemão Karl Marx (1818-1883) e ao também filósofo e economista austríaco Ludwig von Mises (1881-1973), autor de estudo que contesta as teorias econômicas marxistas.
Com carro de som e microfone, se posicionavam contra a o debate de gênero nas escolas. Diziam os nomes dos vereadores que, previsivelmente, votariam de forma conservadora; agradeciam.  Diziam ainda que permitir o debate sobre gênero nas escolas significa confundir a cabeça das crianças e ensiná-las práticas como a masturbação.
De acordo com eles, que contavam com o apoio de alguns transeuntes que aplaudiam o discurso ampliado pelo som na Av. Amaral Peixoto, debater esse tipo de temática no ambiente escolar proporcionaria uma sexualização precoce das crianças. “Acho que o colégio não tem esse papel, pois ele compete à família – pai e mãe”, disse Denise Garrido, empresária, à reportagem da Aduff-SSind, minutos após o grupo “Movimento Brasil Livre” ter entoado o Hino Nacional.
Outro apoiador desse movimento disse que a educação tem que ser baseada em valores, em virtudes e na verdade. “O sexo biológico não pode ser descartado por conta de uma construção social”, afirmou Márcio, que preferiu não dar o sobrenome à reportagem. Ele, que é estudante de História na UFRJ, complementou: “Sou contrário à doutrinação marxista na escola”, disse.
Um grupo de alunos da UFF, se posicionando contra as declarações dos integrantes “Movimento Brasil Livre”, pediu para falar ao microfone. Foram impedidos, a partir da alegação de que se quisessem se manifestar deveriam ter providenciado o próprio carro de som. “Não nos deixaram falar porque a nossa opinião é consistente e foge da reprodução das mentiras”, disse Beatriz Lopes, estudante de História. “Isso é um retrocesso; perpetua um conceito de escola que está ultrapassado, que condiz com a pauta do ‘Escola Sem Partido’. Não se pensa em dialogar com a diferença; eles sequer sabem o que é o debate sobre gênero. Falam em ‘ideologia de gênero’ – o que não existe. Falta informação”, complementa.
Sepe critica votação
O PME (2016-2020) é fruto de uma série de debates ocorridos em 2015 durante a Conferência Municipal de Educação – o que “foi decisivo para a aprovação de várias metas e ações que eram pautas históricas da categoria”, conforme afirmação do núcleo municipal do Sindicato Estadual dos Profissionais da Educação do Rio de Janeiro – Sepe-Niterói.
No entanto, o sindicato alega que o prefeito Rodrigo Neves enviou o projeto para a Câmara com dez meses de atraso, contendo várias modificações e supressões que desvirtuaram o sentido do documento original. “Nossa luta foi pela aprovação de emendas que pudessem recompor o projeto original aprovado na Conferência, dentre elas: 30h para funcionários, 1/3 de planejamento para todos os professores, migração dos professores de 24h para 40h com dedicação exclusiva, mudança de nomenclatura de merendeiras para cozinheiras escolares, plano de saúde, expansão com garantia de qualidade da educação infantil e da educação em tempo integral, discussão de gênero e diversidade nas escolas”, explica Robson Wellington, da coordenação-geral da entidade.
De acordo com o professor, a pauta sobre gênero e diversidade tomou conta do debate. “Mobilizou setores reacionários e fundamentalistas religiosos apoiados pelo fisiologismo da maioria dos vereadores da Câmara. Não havia nada no projeto do Plano que falasse sobre “ideologia de gênero”, estimulasse a pedofilia, homossexualidade ou sexualidade precoce das crianças, muito menos algo que fosse contra as famílias”, disse Robson. Segundo o professor, “o projeto falava sobre o combate ao preconceito e violência nas escolas e a necessária formação dos profissionais para oferecer uma educação não-racista, não-sexista e não-homofóbica para todas e todos”, conclui.