“Não há conjuntura tolerável para os avanços das políticas de genocídio, das políticas de militarização, prisionais e punitivistas”. A avaliação é do atual presidente do Grupo Tortura Nunca Mais-RJ, Rafael Maul, em ato realizado no centro do Rio de Janeiro, no dia 1° de abril, em repúdio aos 60 anos do golpe empresarial-militar de 1964.
A partir desta data, militares e civis, articulados com o poder econômico internacional, organizaram um golpe e tiraram o presidente eleito João Goulart do poder, iniciando uma ditadura que duraria 25 anos no país, marcada pela perseguição política, tortura, assassinatos, desaparecimentos e a violação de direitos humanos de milhares de pessoas.
Professor do Departamento de História da UFRRJ, Maul destacou a importância e a atualidade das denúncias e da luta contra a violência de Estado, no Brasil, ontem e hoje.
“Não podemos tolerar o avanço do encarceramento em massa e a privatização dos espaços prisionais, o avanço da manicomialização e da privatização dos espaços manicomiais, que inclusive deveriam acabar, sendo privados ou públicos. Esses são espaços de desvio de verba pública, espaços de tortura, de racismo, de lgbtfobia. São espaços que devemos lutar contra”, defendeu.
Em frente ao prédio do antigo DOPS, no centro do Rio de Janeiro, ele reforçou a luta pela transformação do local, que foi um centro de detenção e tortura durante a ditadura militar, em um espaço de memória e resistência.
“Estamos diante de um espaço simbólico em vários sentidos, como todas as prisões, nesse país e no mundo, são espaços concretos e simbólicos da violência de Estado. É importante encarar esta luta de frente, em defesa de uma memória que possa olhar para o presente, os vários passados e o futuro”, disse.
Centro de Memória e dos Direitos Humanos no Rio de Janeiro
Também presente no ato, a pesquisadora e professora de direitos humanos Fernanda Pradal, do Coletivo RJ Memória Verdade Justiça e Reparação, destaca que a luta pela transformação do prédio do antigo DOPS num centro de memória é uma luta de muitas décadas e que congrega diversos “atores”.
Desde entidades da sociedade civil constituídas por ex-presos políticos, familiares de mortos e desaparecidos e militantes de direitos humanos, a movimentos de luta contra a violência racista e de Estado, contra moradores de periferias e favelas do Rio de Janeiro.
“Esse espaço precisa ser nosso, de todas as lutas, da produção de conhecimento, da memória coletiva e política. Precisamos exigir em todos os espaços que pudermos que o Rio de Janeiro tenha um lugar do povo carioca e fluminense para que a gente possa refletir, aprender e rememorar para transformar as violências de Estado”, defendeu no ato.
Atualmente, um projeto para a criação de um centro de memória e dos direitos humanos na antiga sede do DOPS, está sob análise do Ministério Público Federal (MPF). Elaborado pelo Coletivo MVJR, a partir do funcionamento da Comissão da Verdade do Rio, e articulado através da campanha ‘Ocupa Dops’, a proposta está alinhada com padrões internacionais sobre lugares de memória.
No Brasil para receber a 36ª Medalha Chico Mendes, representando o coletivo ‘Historias Desobedientes’, a argentina Bibiana Reibaldi reforça que a luta por memória e verdade é internacional e que é um dever de todos os países democráticos, em especial na América Latina, marcada por ditaduras e pela Operação Condor.
A Operação Condor foi um plano de inteligência e de aliança coordenado pela CIA, que permitiu a troca de informações e livre trânsito para perseguir, torturar e matar opositores da ditadura em todo o continente, atuando em países como Brasil, Argentina, Chile, Uruguai, Paraguai e Bolívia. “Nunca mais terrorismo de Estado em nenhum lugar da América Latina”, disse, ao manifestar apoio para a luta da sociedade brasileira por mais políticas de memória, verdade, justiça e reparação.
Ditadura não é coisa do passado!
No ato que ocorreu no centro do Rio de Janeiro, na ocasião dos 60 anos do golpe empresarial militar, as e os manifestantes presentes também criticaram a decisão do governo Lula de não realizar ações oficiais que rememorassem os 60 anos do golpe. O presidente chegou a afirmar que o golpe de 1964 “é história” e que não quer “remoer o passado”.
O governo também ainda não autorizou a recriação da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos, desfeita na gestão de Bolsonaro, e engavetou a criação do Museu da Memória e dos Direitos Humanos, anunciada em setembro de 2023, pelo então ministro da Justiça, Flávio Dino.
Deputada federal pelo Rio de Janeiro, Jandira Feghali (PCdoB) criticou a posição do governo e afirmou que é obrigação política, ideológica e cidadã a luta pela verdade e contra a anistia dos golpistas de ontem e de hoje. No ato, ressaltou que todos os que perderam a vida, os familiares de assassinados e desaparecidos e os que resistiram e sobreviveram, na luta contra a ditadura, não merecem silêncio, merecem aplausos e esforços para que os trabalhos por memória, verdade, justiça e reparação avancem no Brasil, com celeridade.
“Nós precisamos do Centro de Memória no Rio, nós precisamos desapropriar a ‘Casa da Morte’, nós precisamos avançar na Usina Cambahyba, em Campos dos Goytacazes, nós precisamos fazer museu no Brasil inteiro. Temos que garantir que nada seja paralisado e que haja esforço para que as coisas avancem com celeridade. Anistia jamais”, falou, durante a manifestação.
Vereadora pelo Rio de Janeiro, Monica Benício frisou que não há como abordar o tema sem falar de Marielle Franco e do assassinato da vereadora democraticamente eleita, sua companheira, que demorou seis anos para ser esclarecido.
“Em respeito a todos os corpos de todos que tombaram na luta em defesa da democracia e que foram vítimas da violência do Estado, não esqueceremos o passado, nem iremos silenciar. É esse silêncio que produz uma sociedade que permite que vereadoras sejam assassinadas por grupos milicianos, que são também frutos de uma ditadura que não abre sua caixa para que seja revelado o que aconteceu. Por todos os nossos perdidos na ditadura, por Marielle Franco e por todos os jovens negros que tiveram seus corpos tombados pela violência de Estado nas favelas e periferias cariocas, não iremos nos calar!”, reiterou.
Comunicadora popular, moradora do Complexo da Maré e militante dos direitos humanos Gizele Martins lembrou que “a ditadura não acabou nas favelas”, e resgatou os inúmeros casos de invasão de casas, remoções, despejos e jovens negros assassinados em “auto de resistência”.
“Há exatamente dez anos, tanques de guerra invadiriam as ruas da favela da Maré e viveram ali durante um ano e cinco meses sob a Garantia de Lei e Ordem, a GLO. A lei utilizada na ditadura militar foi utilizada na minha casa, na minha rua, nas 44 escolas da Maré. Comunicadores comunitários foram censurados, moradores foram vítimas da violência dos soldados, escolas foram invadidas, crianças tiveram fraldas revistadas à procura de drogas. Isso foi em 2014, há exatamente há dez anos. Foi nessa época que fundei o Maré Vive, página para denunciar as violações do exército, da polícia militar, civil e da ditadura na democracia brasileira. Chego aqui e falo: ditadura nunca mais, Palestina livre do rio ao mar e favela vive”, finalizou a jornalista que, este ano, recebeu a 36° Medalha Chico Mendes, representando a entidade BDS - Boycott, Divestment, Sanctions & Stop the Wall.
Da Redação da Aduff | por Lara Abib
Fotos: Luis Fernando Nabuco