Jul
28
2023

A urgência da luta antirracista: docentes da UFF falam sobre isso

A Imprensa da Aduff ouviu professoras e professores da UFF sobre o racismo na atualidade, a luta para erradicá-lo da sociedade e as visões que permeiam essa urgência. A reportagem especial é publicada em quatro partes, acompanhadas de entrevistas, no Julho das Pretas, mês em que se celebra a resistência com o Dia Latino-Americano e Caribenho das Mulheres Negras e a memória de Tereza de Benguela

Professora Iolanda, da Faculdade de Educação da UFF, no Gragoatá, em Niterói: 'O racismo está no imaginário das pessoas' Professora Iolanda, da Faculdade de Educação da UFF, no Gragoatá, em Niterói: 'O racismo está no imaginário das pessoas' / Luiz Fernando Nabuco/Aduff

“O racismo é uma problemática branca que pessoas negras experienciam”. Assim a artista e pesquisadora portuguesa Grada Kilomba, autora de "Memórias da Plantação: episódios do racismo cotidiano" (Cobogó, 2019), define a questão que atravessa sociedades e que tem impacto na ordem do dia no Brasil e no mundo. 

São várias as denúncias que envolvem o racismo diariamente. Enquanto algumas são silenciadas, outras reverberam nas redes sociais e na imprensa. Exemplos, infelizmente, não faltam. E dados recentes do 17º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, publicados pela Folha de São Paulo em 20 de julho de 2023, dão conta de que, ano passado, os registros casos de racismo no país aumentaram 68%, especialmente no Rio de Janeiro, Bahia e Santa Catarina, com 2.458 ocorrências. 

A infância também termina mais cedo para crianças negras, conforme os dados de pesquisa inédita realizada pelo Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo. Adolescentes negros de 11 anos já são tratados como suspeitos, segundo o relatório "A Experiência Precoce e Racializada com a Polícia", que será lançado no próximo dia 31 de agosto, às 14h, na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. Dos 800 jovens pesquisados, entre estudantes de escola pública e particular ao longo de 2016 e 2019, os meninos pretos entre 11 e 14 anos foram duas vezes mais abordados pela polícia. Renan Theodoro, sociólogo e um dos organizadores do relatório, afirmou ao "Jornal da USP" que a abordagem policial é atravessada pelo recorte racial e socioeconômico.

Vini e as faces do racismo contemporâneo

A questão do racismo envolvendo um homem negro brasileiro e o futebol repercutiu mundialmente recentemente. Os episódios envolvendo o jogador Vinicius Jr, do Real Madrid, evidenciaram a expressão perversa na Espanha, quando o atacante denunciou em campo e fora dele a conivência entre os racistas. A reação por parte das autoridades daquele país foi morosa e vexatória. 

À época, o presidente da La Liga (primeira divisão do futebol no país), Javier Tebas Medrano, criticou o brasileiro e minimizou a gravidade do caso, que repercutiu internacionalmente. Demais autoridades, patrocinadores, clubes e parte da imprensa espanhola silenciaram, convenientemente, demonstrando como a luta contra o racismo ainda é árdua e encontra entraves no "pacto da branquitude" (Companhia das Letras, 2022), para usar a expressão homônima ao livro da pesquisadora Cida Bento. 

Foi sobre esse tema e sobre a urgência da luta antirracista que a imprensa da Associação dos Docentes da UFF (Aduff-SSind), seção sindical do Andes-Sindicato Nacional, conversou com professoras negras e professores negros da universidade. As respostas envolveram análises ampliadas sobre o racismo, a relação com o capitalismo, a ascensão da extrema direita, o avanço da pauta identitária no contexto sindical e a necessidade de políticas públicas mais vigorosas que garantam, para além do ingresso, a permanência de jovens negros na Universidade, assim como o acesso de mais docentes negros no Ensino Superior brasileiro.  

Para Iolanda de Oliveira, da Faculdade de Educação da UFF e uma das primeiras docentes negras da Universidade, o racismo é um problema mundial, que acompanha a história da humanidade. "Embora seja algo falso e que não se justifique cientificamente, o racismo foi incorporado no imaginário das pessoas. E por mais que tenhamos a produção acadêmica mostrando a inconsistência do racismo e uma legislação punindo o racismo num sentido mais amplo, o imaginário social e individual das pessoas — negras ou não negras; héteros ou não héteros — está incorporado no racismo. Quando vamos conseguir eliminar essas ideias?", indaga. 

Segundo a docente, no último quadriênio, as pessoas se sentiram autorizadas a serem racistas, contando com apoio do ex-presidente. Ela compreende que parte dessa reação tem origem em conquistas das minorias. "Há quem se sinta ameaçado por essas políticas [progressistas, de inclusão, de ação afirmativa]. Há quem se mantenha contra e se arme de todos os instrumentos possíveis para impedir o avanço das ações afirmativas. Lembro de uma frase de um militante de muitos anos que dizia que, nesse jogo, não pode haver vencedores e nem vencidos - tem que haver empate. A gente quer o Ubuntu. Mas nenhum grupo ou movimento é homogêneo", considera a professora. 

Cultura do ódio

Segundo Jacqueline Botelho, docente da Escola de Serviço Social e diretora da Aduff, o governo Bolsonaro trouxe com mais velocidade a crise que já era econômica e social para o campo ético-político. "A cultura do ódio exacerbou e financiou o racismo no Brasil. Uma evidência disto foi a política de ataque às cotas raciais, de degradação da política de proteção aos territórios quilombolas e indígenas, em prol do agronegócio e a despolitização do debate étnico-racial", explica. 

Para Ana Carolina Lima, professora do Coluni/Colégio Universitário Geraldo Reis, o ressurgimento de uma extrema direita fascista que discrimina e desumaniza quem não se assemelha com os sujeitos ditos “padrão”, fomenta casos como o sofrido pelo jogador brasileiro na Europa. "Entendo que só por isso, Vini Jr já é suscetível a passar por racismos e xenofobias em espaços 'brancos'. O fato dele não se calar diante desses absurdos, faz com que esse espaço (Espanha) tente a qualquer custo 'colocá-lo no seu lugar'. É o 'complexo de próspero' que Fanon conceitua em 'Peles negras, máscaras brancas' (Ubu Editora, 2020). É o dominador sempre justificando a sua atuação violenta como algo “civilizador” e necessário para o progresso. Como se o colonizado estivesse esperando esse bom senso vindo de fora: 'complexo de inferioridade'", afirma.

O medo de perder privilégios, avalia Ana Carolina, é o fio condutor para o avanço do conservadorismo na sociedade. "Acredito que essa manutenção de status quo é revelada, na verdade, como a necessidade de manutenção da ordem, defesa da família, entre outras justificativas para a barbárie", diz.

'Reação a avanços' 

De acordo com João Claudino Tavares, docente da UFF em Rio das Ostras e diretor da Aduff, as manifestações racistas podem ser associadas à reação ao avanço de algumas conquistas das minorias. Citando o geógrafo negro Milton Santos, para quem "a classe média não defende justiça, ela luta para manter privilégios", segundo Claudino as lutas contra as desigualdades são vistas como ameaças aos privilégios. "Protagonismos de não brancos/europeus/patriarcais são vistos como ameaças aos dominadores. Desvelar a chamada 'democracia racial' já causou polêmicas. Reivindicar 'lugar de fala' incomoda privilégios e os desnaturalizam. O sistema de cotas nas universidades públicas é combate efetivo aos privilégios e escancaram desigualdades cruelmente produzidas. Lugar de negras e de negros é, também, onde elas e eles quiserem", considera o professor.

Segundo Fernando de Sá Moreira, docente da Faculdade de Educação da UFF, no Gragoatá, em Niterói, diversas pautas conservadoras têm como intenção a manutenção de privilégios. "É uma reação ao sentimento de que se está perdendo algo que naturalmente deveria ser seu. Um certo lugar na sociedade e no debate público e uma certa naturalidade das vantagens de ser branco em sociedades racistas, como a sociedade brasileira, espanhola ou outras sociedades mundo afora", afirma.

De acordo com ele, envolve ainda a criação de novos privilégios. "Na medida em que elas [as sociedades] vão se tornando menos racistas com o avanço de pautas antirracistas, há uma constante movimentação no sentido de [gerar] novos privilégios e o estabelecimento de novas formas de manter a hierarquia de poder racialmente determinadas. Se vê isso na ascensão da escravização de africanos ao longo de toda a modernidade, mas se vê isso também no pós-escravidão, como a invenção de novos privilégios através de um discurso racial e racista bem específico", diz Fernando.

'Superar esse modelo' 

Para Susana Maia, docente da UFF em Rio das Ostras e diretora da Aduff, a opressão da raça e etnia mistura uma reação de medo com uma reação de ódio. “Isso é muito alimentado pela cultura higienista, fascista e misógina que é marca em diversos períodos históricos. No caso do racismo, essa cultura se enraíza em especial no período escravocrata que colocou o negro e a negra no lugar do não sujeito, portanto, objeto útil ou descartável conforme as necessidades dos grupos dominantes”, exiplica.

Segundo a dirigente da Aduff, essa visão se ressignifica em outras estratégias de opressão contemporâneas, como o ataque aos jogadores de futebol. “Os ataques a jogadores negros latino-americanos, africanos ou de outros territórios alijados do centro do poder mundial conjuga o racismo com o imperialismo – ambos estratégias de poder que buscam legitimar o comando de uma elite dominante e uma forma de organização política, cultural e econômica da sociedade. Só avançaremos na superação dessas estratégias de poder, superando essa forma de sociabilidade”, defende a docente.

Da Redação da Aduff
Por Aline Pereira
(Com a colaboração de Hélcio Duarte Filho)
Fotos: Luiz Fernando Nabuco

Professora Iolanda, da Faculdade de Educação da UFF, no Gragoatá, em Niterói: 'O racismo está no imaginário das pessoas' Professora Iolanda, da Faculdade de Educação da UFF, no Gragoatá, em Niterói: 'O racismo está no imaginário das pessoas' / Luiz Fernando Nabuco/Aduff