Ago
04
2016

Em Niterói, tocha 'foge' de protestos que jogaram ‘água’ na festa

Manifestações recebem símbolo da Olimpíada para expor realidade do país em meio ao 'ajuste fiscal' que penaliza trabalhadores e ameaça direitos

DA REDAÇÃO DA ADUFF

Não vai ter tocha, gritou um manifestante enquanto aguardava a passagem do símbolo olímpico em frente à praça Arariboia. Pois quase não teve, de fato, nem ali nem em todo o Centro de Niterói. Tanto na chegada quanto no retorno, a tocha 'fugiu' dos protestos e passou escondida e apagada dentro de um ônibus em parte considerável do percurso. Nada disso, porém, sequer foi citado nos noticiários da Rede Globo, os de maior audiência na TV brasileira. A Aduff-SSind participou do ato público ao final da tarde da terça-feira (2).

A festa que o Comitê Olímpico e a Prefeitura programaram – e que não agradou a muita gente insatisfeita com a situação do país, do estado e da própria cidade – só aconteceu para valer quando ela percorreu a zona sul de Niterói (Ingá, Icaraí e São Francisco) e no Teatro Popular, onde chegou para pernoitar – protegida dos protestos que a perseguiam desde Itaboraí, a 33 quilômetros de Niterói, e persistiram em Alcântara e no centro de São Gonçalo.

Na entrada da tocha na cidade, os organizadores cancelaram a cerimônia que ocorreria aos pés da estátua do índio Arariboia e cruzaram o Centro dentro de um comboio de veículos. No retorno pela av. Amaral Peixoto, a principal daquela parte da cidade, manifestantes estragaram a festa, para a qual o prefeito Rodrigo Neves tivera o cuidado de mandar passar uma maquiagem na pintura das ruas que integravam o trajeto do cortejo. A polícia lançou bombas de efeito moral contra manifestantes – a reportagem ouviu pelo menos quatro explosões. Não houve uso de bombas de gás lacrimogênio.

A tocha percorreu toda a avenida, já por volta das 19h30, sob tensão e em meio a uma mistura de populares que foram recebê-la e manifestantes, ambos em menor número do que os que a esperavam em vão mais cedo na praça Arariboia. Parte do percurso se deu com ela apagada e dentro de um ônibus – as tochas, ao todo foram fabricadas 12 mil para a Rio 2016, são acesas por meio de uma lamparina que teoricamente traz o fogo da chama acesa em Olímpia, na Grécia, no dia 21 de abril.

A tocha apagou?

Na altura da Praça da República, em frente à Câmara de Vereadores, onde a banda Sinfônica Ambulante, contratada para o evento, tocava a plenos pulmões, ensaiou-se acender a tocha e seguir carregando-a até o fim do percurso. Houve tumulto. Alguns manifestantes avançaram contra ela. Sobre o que ocorreu a seguir, pairam algumas versões. Uma delas, diz que a tocha foi apagada. Outra, que um rapaz a pegou e saiu correndo com ela. O que não há dúvida é que a confusão foi grande. E o roteiro da festa foi outra vez abortado.

A parada prevista para ocorrer na agência do Bradesco, na reta final da Amaral Peixoto, foi cancelada. Ali, algumas dezenas de jovens contratados pela instituição financeira para animar a festa aguardaram em vão a prometida paradinha de 15 minutos, na qual o 'fogo olímpico' prestaria homenagens ao segundo maior banco privado do país, um dos patrocinadores dos Jogos, que em 2015, enquanto o país já afundava na crise, lucrou R$ 17,18 bilhões, 13,9% a mais do que no ano anterior. "Eles decidiram cancelar devido a confusão", disse um funcionário do Bradesco à reportagem.

Prisões

Bem antes disso, ainda com o céu claro, pelo menos três pessoas já haviam sido detidas pela polícia na Praça Arariboia, entre elas uma professora. Gás de pimenta também fora lançado contra os manifestantes, que se concentravam nas proximidades do índio, enquanto do outro lado, na divisória íngreme da av. Rio Branco, uma fileira de populares se equilibrava. Todos aguardavam a passagem da tocha. Entre os dois grupos, embora mais próximo do primeiro, posicionavam-se lado a lado soldados do batalhão de choque da Polícia Militar do Rio de Janeiro – profissionais com os salários devidamente em dia, ao contrário da maioria do funcionalismo estadual, medida providencial para assegurar a repressão aos que não gostaram da festa.

O problema é que salários em dia não são a realidade de muita gente que vive nos caminhos pelos quais a tocha acabara de passar. Em Itaboraí, o fogo olímpico se deparou com desempregados do Comperj, o inconcluso e paralisado pólo petroquímico da Petrobras. Em Alcântara e São Gonçalo, mais desempregados, servidores e terceirizados dos serviços públicos com salários atrasados. Em Niterói, somaram-se manifestantes insatisfeitos com as medidas que o governo interino de Michel Temer tenta aprovar em Brasília. Propostas que colocam em risco o futuro dos serviços públicos, das políticas sociais, do direito à aposentadoria, das leis de proteção ao trabalho, e dos salários e empregos do funcionalismo nas três esferas.

Não é pouca coisa. E a insatisfação fica ainda mais compreensível quando se sabe que é difícil encontrar um brasileiro adulto que não tenha dúvidas de que as obras que prepararam a Olímpiada foram tocadas a base de propina, que alimentou contratos fraudulentos e o bolso de muitas autoridades.

A festa e Brasília

A trajetória de rua da tocha em Niterói, que começara torta, terminou de forma desastrosa. Correria, sirenes ligadas do enorme aparato policial que escoltava o objeto, algumas bombas lançadas pela polícia. Desastrosa, mas talvez mais condizente com o Brasil em que não param de pipocar denúncias de corrupção nas obras da Copa do Mundo e da Olímpiada. Em que o desemprego cresce de vento em popa, e serviços públicos gratuitos de áreas como a saúde e a educação podem entrar em colapso caso projetos que mudam as regras fiscais sejam aprovados.

Entre essas propostas, estão o PLP 257 e a PEC 241, que o Planalto tentava votar na Câmara dos Deputados, sob o protesto de servidores, no mesmo momento em que a tocha percorria as ruas de Niterói, mas que, ao menos por enquanto, não conseguiu. Em dia de manifestações ainda tímidas, mas, assim como o fogo olímpico, simbólicas e que incomodam, nem a tocha passeou à vontade pelas ruas de Niterói, nem os projetos foram votados como queria o governo.

DA REDAÇÃO DA ADUFF
Por Hélcio Lourenço Filho

Foto: Zulmair Rocha