Jul
28
2023

Raça e classe: docentes da UFF analisam as relações entre o racismo e o capitalismo e para além dele

Segunda parte da reportagem especial, publicada no Julho das Pretas, docentes da UFF ouvidos pela Aduff abordam com variadas visões o racismo estrutural e a luta para superá-lo sob o capitalismo e para além desse sistema

A professora da UFF Jacqueline Botelho, da diretoria da Aduff: racismo tenta naturalizar os abismos sociais A professora da UFF Jacqueline Botelho, da diretoria da Aduff: racismo tenta naturalizar os abismos sociais / Luiz Fernando Nabuco/Aduff

Da Redação da Aduff

Não é possível falar em combater as desigualdades e em transformações sociais sem considerar e enfrentar o racismo estrutural que existe na sociedade brasileira. Estes são aspectos comuns às análises colhidas pela reportagem da Aduff em torno de um tema complexo, que envolve a discriminação racial e o abismo social sob o qual se construiu um país.

É o que aborda esta segunda parte da reportagem especial sobre o racismo no Brasil, publicada no mês em que a luta para erradicá-lo organiza o Julho das Pretas, as marchas associadas ao Dia Internacional da Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha, 25 de julho, e em que se celebra Tereza de Benguela, líder quilombola do século 18 e referência do papel combativo da mulher negra na história brasileira.

A professora Jacqueline Botelho, docente da Escola de Serviço Social, no Gragoatá, em Niterói, e integrante da diretoria da Aduff, destaca que o racismo é sempre estrutural na sociedade capitalista. "Ele é necessário no fortalecimento dos discursos de meritocracia, individualismo e competitividade, que fragilizam as lutas da classe trabalhadora contra a opressão capitalista. Nesse sentido, não existe combate ao capitalismo, sem combate ao racismo, assim como todo combate ao racismo, precisa considerar a sua condição estrutural", diz. 

De acordo com a professora, o povo negro sempre esteve organizado e lutando contra a opressão, desde o período escravista até a atualidade. "O racismo aparece como arma ideológica do capitalismo para naturalizar os abismos sociais, econômicos e políticos que definem certo “lugar de negro” na nossa sociedade, onde está o trabalho precarizado, o desemprego. Assim, entendemos que a classe trabalhadora é majoritariamente negra, e que não é possível identificar quem ela é, sem falarmos do povo negro e da ação predatória do racismo", argumenta.

Para Jacqueline, não é possível falar com qualidade no enfrentamento à pobreza sem considerar os acúmulos do debate racial, pois o racismo é elemento de sustentação fundamental do capitalismo. "Foi o discurso racista no capitalismo que naturalizou a pobreza, os antigos cortiços, as favelas, os presídios como lugares de negros, que supostamente não deveriam reivindicar moradias, empregos e salários dignos por serem classificados como “inferiores”. O capitalismo dessa forma esconde sua contradição fundamental (produção de riqueza e tecnologia de forma diretamente proporcional à produção da pobreza da classe trabalhadora). A pobreza passa a ser considerada uma produção do povo negro ou uma herança maldita dos africanos", elucida. 

 'Indissociáveis' 

Colega de Jacqueline na Universidade e na diretoria da Aduff, João Claudino – professor da UFF em Rio das Ostras – considera que colonialismo, xenofobia e racismo estão imbricados e que existem singularidades em cada uma das mediações. "O caso do racismo recorrente contra Vini Jr [jogador brasileiro que atua no Real Madrid e ganhou os noticiários ao se levantar contra recorrentes manifestações racistas da torcida espanhola] se expressa como a crise existencial do processo civilizatório mediado pelo capital. Para os racistas, se torna incômodo, depois inaceitável e inadmissível que um homem negro ou uma mulher negra, sempre colocado na zona do não-ser, protagonizem e se afirmem como ser que somos. Racistas não aceitam. Racistas não aceitam que Vini Jr se destaque e protagonize espetáculos com alegria, com vigor, com rigor por meio de sua arte, e menos ainda que reaja às provocações", analisa.

O diretor da Aduff também citou a obra do cientista político estadunidense Cedric J. Robinson, “Marxismo Negro: a Criação da Tradição Radical Negra” (Perspectiva, 2023), fundamentada na tese do “capitalismo racial”, a de que a “economia capitalista é constituída segundo uma lógica racial”.

Para João Claudino, portanto, capitalismo e racismo são indissociáveis. "Nesta perspectiva, as lutas contra o racismo e a antirracista colocam em xeque os privilégios constitutivos de um sistema moderno/colonial/patriarcal onde o homem branco se sente o próprio ser e os não brancos habitam a zona do não-ser e assim querem que se mantenha. As lutas anti-sistêmicas são parte das lutas pela emancipação humana mesmo que não se coloquem assim imediatamente", diz.

 'Não é pauta secundária' 

Docente da Faculdade de Educação na UFF, no Gragoatá, Fernando Moreira compreende que a ruptura com capitalismo não pode ser tomada como uma condição necessária para o avanço da pauta antirracista. "É como se estivéssemos dizendo e, no passado isso já foi dito, que somente quando houver uma revolução socialista, por exemplo, ou quando estivermos numa sociedade diferente é que algo pode ser feito ou que algo acontecerá espontaneamente. Não duvido da relação íntima entre a exploração de classe e a exploração racial. Não se trata disso; mas se trata de não defender uma posição etapista que coloca o combate ao racismo e o antirracismo como uma pauta secundária a um movimento revolucionário ou de mudança de uma estrutura de sociedade. Pois se a estrutura de sociedade não mudar junto com a perspectiva antirracista que está lá desde o princípio de um projeto de uma nova sociedade, essa sociedade também está fadada a ser uma sociedade racista", analisa.

Para o professor, embora o racismo e o capitalismo estejam ligados na sociedade atual, ele não é uma mera invenção do capitalismo. "E nem deixa de existir porque o capitalismo deixa de existir. É importante pensar essa ruptura com o capitalismo como um processo. É preciso romper com a sociedade tal como ela está dada e uma das condições centrais é o capitalismo; é preciso romper enquanto processo e enquanto caminho que estamos construindo para outra sociedade”, defende.

De acordo com Fernando Moreira, nesse processo de ruptura, outro projeto de sociedade deve estar diante de uma perspectiva de que certas formas de exploração, tal como o racismo, não devem mais existir. “Mas isso não deve nos estagnar em relação ao avanço de pautas antirracistas em suas várias configurações — têm pautas macros e pautas estratégias, micros e importantes também. É preciso pensar nas grandes e pequenas rupturas com o sistema vigente”, aponta.

'Antes do capitalismo' 

Para Iolanda de Oliveira, docente da Faculdade de Educação na UFF, raça e classe se cruzam, mas o racismo não surge com o capitalismo. "Ele é anterior ao capitalismo, foi reforçado pelo capitalismo e foi legitimado por meio da Ciência. Mas há sociedades não capitalistas que são racistas. Em 1989, estive em Cuba para apresentar pesquisa sobre a questão negra em um congresso, com outros pesquisadores brasileiros. Os congressistas cubanos não comentavam nossas pesquisas porque não estavam autorizados a isso — admirei Cuba e queria que a nossa pobreza fosse igual a de Havana, quando não víamos as pessoas passando fome. A eliminação do capitalismo, contudo, não eliminou a discriminação racial e de gênero, por exemplo", diz.

Entretanto, a pesquisadora adverte que não existe conciliação entre antirracismo e capitalismo. "Entre todas as condições, para que o antirracismo prevaleça, tem que haver a destruição do capitalismo, porque é incompatível. Mas a eliminação do capitalismo também, por si só, não é suficiente para eliminar o racismo, embora seja necessária [a superação do capitalismo]", considera.

Professora no Colégio Universitário Geraldo Reis (Coluni/UFF), em Niterói, Ana Carolina Lima também defende a intercessão entre classe e raça para que se compreenda as opressões em sociedade. "Goldberg e Silvio Almeida nos trazem a reflexão sobre as estruturas de manutenção do racismo, que sustentam o capitalismo. Há pouco tempo, Muniz Sodré trouxe uma grande contribuição, entendendo que para além da estrutura, o lugar do negro é um lugar móvel", diz a docente. "Se entendermos o quanto muitas vezes nossos parceiros se encantam com o sistema, penso que o negro que sucumbiu ao capital é aquele que, para Sodré, “está ocupando um outro lugar”. Ele não deixa de ser negro, mas é como se entendesse dessa forma. No entanto, continuará sofrendo racismo", afirma a docente. 

Para Susana Maia, docente do curso de Serviço Social da UFF em Rio das Ostras, e diretora da Aduff, é preciso ultrapassar todas as formas de opressão. “Superar o racismo, o machismo, a xenofobia, a lgbtfobia e qualquer forma de opressão que é funcional a esse sistema fundado na produção da desigualdade, só é possível com a superação da exploração de classe, superação de uma forma de sociabilidade que se funda na subsunção do humano ao interesse do capital. Na qual, portanto, as opressões são funcionais”, diz.

Contudo, Susana alerta que essas lutas caminham juntas, sem sobreposição. “Ambas são necessárias para a construção de uma nova sociabilidade”, defende.

Da Redação da Aduff
Por Aline Pereira. (texto) e Luiz Fernando Nabuco (fotos)
(com a colaboração de Hélcio Lourenço Filho)

A professora da UFF Jacqueline Botelho, da diretoria da Aduff: racismo tenta naturalizar os abismos sociais A professora da UFF Jacqueline Botelho, da diretoria da Aduff: racismo tenta naturalizar os abismos sociais / Luiz Fernando Nabuco/Aduff