Mar
13
2024

'Carolina Maria de Jesus é o grito da favela e o saber intelectual do povo negro', diz diretora da Aduff

Docentes que integram a direção do sindicato comentam o legado da escritora de "Quarto de despejo: diário de uma favelada", nascida há 110 anos, que criticou e denunciou as desigualdades sociais em meados do século 20

 

Neste dia 14 de março, completam-se 110 anos do nascimento de Carolina Maria de Jesus, mulher negra, pobre, catadora de papel, empregada doméstica, moradora de favela, mãe solo de três crianças, que hoje é celebrada como uma das mais importantes escritoras da literatura brasileira. 

Com origem na cidade mineira de Sacramento, Carolina era filha de descendentes de escravizados. A mãe era lavadeira para uma senhora que financiou, por curto período, os estudos de Carolina. Assim, ela teve a chance de frequentar a escola e ter acesso ao letramento formal, aprendendo a ler e a escrever. Com olhar e espírito crítico aguçados a partir da dureza da própria vida, Carolina foi muitas vezes ridicularizada, quando não perseguida, por gostar de ler - o que era improvável para a maioria das pessoas negras diante do fosso de desigualdades provocadas pelos 350 anos de escravidão no Brasil e uma abolição sem qualquer tipo de reparação aos cativos. 

Após a morte da mãe, tentou a "sorte grande" em São Paulo, trabalhando em casa de famílias como doméstica. Morou na favela do Canindé em condições de extrema vulnerabilidade, catando papel para sobreviver. E como uma estratégia para resistir em meio a tanta adversidade, que incluía a fome e a incerteza, Carolina escreveu, de modo singular, sobre o cotidiano. 

Em Canindé, ela conheceu o jornalista Audálio Dantas, que em meio a uma reportagem local teve acesso à preciosidade dos escritos de Carolina, retratada no jornal 'Folha da Noite', em maio de 1958. Um dos seus registros foi publicado à época, em que Carolina afirmava: 

"Não digam que eu fui rebotalho 
Que vivia à margem da vida
Digam que eu procurava por trabalho
Mas sempre fui preterida

Digam ao meu povo brasileiro
Que o meu sonho era ser escritora,
Mas eu não tinha dinheiro
Pra pagar uma editora"

Com a repercussão da reportagem, Carolina publicou, na década de 1960,  "Quarto de despejo: diário de uma favelada" - o mais famoso dos cinco livros editados. Com o sucesso, viajou para outros países para o lançamento da obra traduzida em mais de 14 línguas e conheceu personalidades da cena cultural, a exemplo de Clarice Lispector. No entanto, foi esquecida pela mídia e pelos intelectuais embranquecidos da época, morrendo, em 1977, em uma casa de alvenaria (título de outro livro dela), no interior paulista. 

Para a docente Jacqueline Botelho, docente da Escola de Serviço Social e diretora da Aduff, Carolina Maria de Jesus é um exemplo de resistência. "Ela foi uma mulher negra que desmascarou o capitalismo e a farsa da democracia no Brasil. Denunciou o tratamento da favela como o quarto de despejo da cidade; o utilitarismo dos políticos que buscavam votos e desapareciam no cumprimento do dever público; a  dor da mãe que só tem a opção de buscar no lixo o presente dos filhos, tal como descreve  na ocasião  do aniversário  de Vera Eunice, que precisava  de um par de sapatos", comenta a professora. 

De acordo com Jacqueline, que também é uma mulher negra, Carolina escancarou como ninguém o preconceito contra a negritude. "A fome e a pobreza são explicitadas como o lugar de negro na sociedade capitalista, definida por uma divisão social, racial e sexual do trabalho, que espera ser a mulher negra a figura da subordinação, da informalidade, da precariedade, da fome", afirma. 

Segundo a sindicalista, Carolina denuncia a falsa abolição. "Ela narra um cotidiano de lutas na busca pela sobrevivência: a sua busca pelos livros, a esperança pela transformação social, sem romantizar a vida na favela e demonstrando a vida pulsante ali presente", considera.

De acordo com Jacqueline, a importância de Carolina está na "contestação do lugar de subordinação, definido no capitalismo como próprio de mulheres negras. Ela representa o grito da favela e o saber intelectual do povo negro".

Teses da Realidade Brasileira

Para João Claudino Tavares, docente da UFF em Rio das Ostras e diretor da Aduff, Carolina Maria de Jesus, carinhosamente apelidada pela mãe de Bitita, "foi uma menina negra que se tornaria uma das maiores expressões da práxis, da crítica da realidade, das condições de vida de uma parte significativa da classe trabalhadora, do racismo, do patriarcado, da questão agrária, urbana e social". 

Claudino afirma que Carolina escreveu teses da realidade brasileira, que documentam a realidade cruel do país. "As grandes sínteses contidas nos seus diários, são verdadeiras teses, são as nossas teses, as teses da realidade brasileira. Cada dia, cada pedaço escrito, apresentam contundentes críticas da realidade e o mais surpreendente é que é extremante e cruelmente atual", aponta o professor.

De acordo com o dirigente da Aduff, Carolina Maria de Jesus é uma mulher imortal; não aquela que se pretende na controversa e segregada Academia Brasileira de Letras, mas "a imortalidade da sua contundência, da sua contribuição sobretudo para a classe trabalhadora em sua totalidade e suas singularidades", afirma João Claudino.

Ele também lembra à reportagem da Aduff-SSind que a escritora da trilogia “Diário de Bitita”, “Quarto de Despejo” e Casa de Alvenaria” escancarou e elevou "ao mais alto nível a crítica da realidade, sem qualquer romantização, nem subterfúgios nem apelações. Sem Carolina Maria de Jesus as questões rural, urbana e social não serão apreendidas em suas totalidades. Ler Carolina Maria de Jesus nas universidades, colocar nos programas das nossas disciplinas é dar oportunidade para as novas gerações elevarem o pensamento crítico a uma nova dimensão, a um outro patamar", considera o professor.

Intelectual visceral

Para Rodrigo Torquato da Silva, docente da UFF em Angra dos Reis e dirigente da Aduff, Carolina Maria de Jesus é uma intelectual visceral que oferece uma chave interpretativa para melhor compreender o Brasil dos "debaixo". 

"Ao dialogar sociologicamente, criticamente com a realidade brasileira a qual ela está submetida, ela nos apresenta uma chave interpretativa do Brasil sob uma perspectiva visceral na medida em que, ao falar sobre a sua própria experiência de classe, de mulher negra, de mãe solteira, moradora de uma favela, sob jugo de uma infraestrutura terrível, Carolina Maria de Jesus, ao mesmo tempo, está colocando todos os discursos políticos, sociológico, academicista, sob cheque", compreende o professor que, em 2016, coordenou o curso de extensão "Carolina Maria de Jesus, uma intelectual visceral". 

Segundo o professor, ela foi uma intelectual orgânica, aqui em diálogo com o conceito do filosofo italiano Antonio Gramsci (1891-1937). Para Torquato, Carolina Maria de Jesus foi uma escritora perspicaz, aguçada na sua crítica e fabulosa na sua narrativa. "Ela lutou e pagou um preço com a própria vida, morrendo na miséria, com asma, abandonada de todos os holofotes, sem grana, porque ela bancou aquilo que ela era: uma escritora intelectual visceral do Brasil", analisa. 

De acordo com Torquato, Carolina rompeu com as tentativas de setores da esquerda e da mídia burguesa que pretendiam lhe engessar. "Tentaram lhe impor um lugar e uma perspectiva de escrita única, congelada, cristalizada, onde ela só pudesse falar daquilo que a sociedade burguesa e hipócrita queria ouvir - uma mulher negra que sobrevivia na luta, guerreira, catando seu livros e fazendo seus cadernos com material retirados dos lixos. E ela disse não a esse lugar! Ela disse: 'eu sou escritora, eu poetiza; eu vendo mais na Bienal em que nossos livros estão expostos do que está vendendo neste exato momento o Jorge Amado'. Ela dizia: 'eu discuto o Brasil tanto quanto Clarice Lispector, então eu não aceito que me cristalizem numa narrativa unilateral'. E ela pagou um preço alto, porque ela diz num dos textos que foi enganada e roubada (por editoras, por quem a empresariou) mas não se rendeu", disse.

Para o docente, Carolina gastou todo o dinheiro que ganhou com o sucesso de "Quarto de Despejo" para publicar outros livros, por conta própria, sobre outros temas, a exemplo de "Provérbios" - ainda pouco conhecido e de edição limitada. Segundo o sindicalista, Carolina Maria de Jesus oferece uma chave interpretativa do Brasil. "Importante para que a sociedade compreenda as nossas matrizes e as nossas intelectuais orgânicas", afirma o docente ao lembrar que 21 de Março é Dia Internacional contra a Discriminação Racial, luta que foi de Carolina e permanece na agenda contemporânea.

Da Redação da Aduff
Por Aline Pereira
Foto: Divulgação/Mostra CMJ

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