Dez
06
2023

Quilombo da Marambaia resiste às tentativas de expulsão e reivindica políticas públicas

Território do Quilombo da Ilha da Marambaia necessita de melhores condições de vida para a população. Assunto foi discutido em roda de conversa na Aduff, durante o Novembro Negro

"A luta quilombola no Quilombo da Ilha da Marambaia: desafios no campo do trabalho, educação e saúde" foi o tema da roda de conversa organizada pela Escola de Serviço Social (ESS) da UFF, apoiada pela Aduff, e que aconteceu na sede da seção sindical, último dia 28, no mês da Consciência Negra. A atividade foi mediada por Jacqueline Botelho, docente da ESS e diretora da Aduff, e Valéria Bicudo, também professora na ESS. Os convidados foram Bertolino Dorotéa de Lima Filho, diretor da Associação de Remanescentes Quilombolas da Ilha da Marambaia (Arquimar), e Aline Caldeira Lopes, professora da Escola de Serviço Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e advogada popular, que conversaram sobre a luta histórica da comunidade pelo direito ao reconhecimento e à titulação das terras como espaço de resistência quilombola e da demanda por políticas públicas eficazes para a população da Ilha.  

"É de extrema importância fortalecer as organizações autônomas no compromisso com a luta e a crítica ao capitalismo, sistema exploratório que atualiza e reforça a dinâmica das estruturas racistas na nossa sociedade. O caso da Marambaia articula diversas questões importantes para pensar o Brasil Contemporâneo, o capitalismo, a relação entre Forças Armadas e democracia no processo de transição inacabada após a ditadura militar", explicou Aline.

De acordo com a docente, a Ilha - próxima a Itacuruçá (Mangaratiba), na Costa Verde do Rio de Janeiro – é um lugar paradisíaco em área de proteção ambiental, com forte apelo turístico e de interesse do grande capital. "Casou estranheza e incômodo [às autoridades, aos governantes] uma população negra habitar aquele território com dignidade", apontou a professora ao denunciar que as ações do Estado para inviabilizar a vida dos nativos naquela região revelam motivações racistas. 

Atualmente, a Ilha da Marambaia é um território partilhado entre a Marinha do Brasil e a comunidade quilombola, certificada pela Fundação Palmares em 1999 e, em 2015, pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA). 

Segundo Aline, a localização privilegiada da Marambaia beneficiou durante anos o comércio de mão de obra africana, mesmo depois da proibição do tráfico na Costa Altlântica do Brasil, em 1850. "A Marambaia continuava a receber navios da África ilegalmente, com a conivência das autoridades fiscalizatórias. As pessoas chegavam e desembarcavam ali, nas terras que eram de propriedade do Comendador Joaquim José de Souza Breves, que tinha terras em praticamente toda a região de Mangaratiba. Os escravizados eram destinados ao trabalho nessas fazendas. Depois da morte do Comendador, as terras foram passadas à União e, após o fim da escravidão, as pessoas permaneceram na Ilha", disse.

De acordo com a docente, houve quem desconfiasse da possibilidade de a região ter abrigado um quilombo - o que a professora combate ao afirmar que quilombo não necessariamente deve ser tomado nos moldes do que foi o de Palmares, em Alagoas, o mais famoso do Brasil . "Quilombo era um termo utilizado na linguagem criminal e qualquer forma de resistência ao regime escravocrata poderia ser considerado um aquilombamento. E, na Marambaia, houve várias formas de resistência", revelou.

Política de esvaziamento

A luta que atravessa gerações é árdua e diária pelo direito à existência na Ilha de Marambaia. "Usando o braço forte do Estado, que foi a Marinha, eles começaram a política de esvaziamento da Ilha", contou Bertolino, conhecido como Lino, ao recuperar dois momentos cruciais das tentativas promovidas pelos governantes para a expulsão dos quilombolas da região. O primeiro, na década de 1970, em meio à ditadura empresarial-militar do Brasil; e o segundo, nos anos 1990, quando começaram processos individuais para remover os habitantes da Ilha.

Conforme os convidados da atividade, na década de 1930, foi inaugurada uma escola de pesca na Ilha da Marambaia, que além dos nativos, recebeu jovens de outros estados com a perspectiva de profissionalização para trabalhar no setor pesqueiro. 

Nos anos 1970, durante a presidência de Emílio Garrastazu Médici, o Estado desarticulou a estrutura socioeconômica que existia na Ilha. As Forças Armadas chegaram e instauraram decretos, avisos ministeriais; demitiram trabalhadores da escola de pesca, destruíram residências que consideravam precárias, a fábrica de gelo necessária aos pescadores. Cortaram árvores frutíferas centenárias, destruíram áreas de cultivo, restringiram o transporte. "Lá tinha maternidade, cinema, correios, armarinhos, escola, igreja. Tomaram uma série de providências que tinham como objetivo final tornar a Ilha da Marambaia de uso exclusivamente militar, a despeito da ocupação histórica da região desde o período escravocrata. Ceifaram as condições de vida e de trabalho", considerou Aline Caldeira.

Ainda assim a população resistiu, à exemplo da família do Lino. "Primeiro, tiraram o ginásio [atual ensino fundamental 2] e a escola técnica. As pessoas foram saindo. Mas outras continuaram, com apenas o primeiro segmento [atual quinto ano], e continuaram pescando. Aí, na década de 1990, eles começaram um outro momento do esvaziamento da Ilha, tirando tudo o que deu pra tirar: não deixavam a pessoa trocar uma janela [da própria casa] e começaram os processos individuais - o que nos levou a conhecer as pessoas [advogados populares, docentes universitários] que nos apoiaram, porque não tínhamos conhecimentos jurídicos e nem recursos financeiros", informou. 

Na década de 90, a União ajuizou onze ações individuais de reintegração de posse, a partir de uma denúncia feita pelo Comando Militar da Marinha e encaminhada à Advocacia Geral da União (AGU). A mãe do Lino, dona Sebastiana, respondeu a um processo individual em 1998. Ela, que sempre foi moradora da Ilha e teve entre seus ancestrais pessoas escravizadas, viu a casa ser lacrada, seus pertences levados, e nunca mais retornou. Faleceu em 2014, sem saber que em meio à luta judicial para provar que não era invasora, conquistou o direito de não ter a habitação destruída pela União. "Ela não conseguiu voltar para casa, mas aquela casa se tornou símbolo de resistência", afirmou Lino.

As ações individuais foram paralisadas somente após o procurador Daniel Sarmento ajuizar ação civil pública contra a União, que tramitou por anos, atestando os indícios de que a Marambaia era comunidade quilombola. Hoje, a União responde à denúncia feita em 2009, na Corte Interamericana de Direitos Humanos. Acatada apenas no ano passado, a denúncia informa todas as violações do Estado brasileiro contra os quilombolas e exige uma reparação à comunidade, considerando que a Ilha de Marambaia também é um lugar de memória da ditadura militar no país.  

TAC e reivindicações 

A União e as Forças Armadas seguem tendo interesse na expulsão dos quilombolas na Marambaia. Em 2014, depois de muita negociação, moradores e autoridades assinaram um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) - condicionante para o reconhecimento do território como comunidade quilombola. A assinatura de uma terceira versão do TAC se deu em um momento em que a população da Marambaia se viu pressionada, já que estava em condições muito ruins e, por isso, nutria a expectativa de prontamente obter políticas públicas para o local. 

O TAC, entretanto, restringiu em aproximadamente 30% a posse das terras quilombolas na Marambaia, com diversos entraves para a comunidade continuar crescendo, e instituiu regras de convivência - proibiu a construção de cais na praia que a comunidade habita, a exploração do turismo e a construção de casas com dois andares, por exemplo. 

"Hoje, quando a gente olha para outras comunidades, a gente vê o seguinte: comunidade quilombola não deve ser titulada. É o que eles pensam. Porque esse é o parâmetro do capitalismo. Uma comunidade titulada sai totalmente do mercado. A terra não é do indivíduo, é da coletividade. E eles querem impedir a titulação em si, e não é só na Marambaia não", criticou Lino. 

Para o presidente da associação quilombola da Marambaia, inaugurada em 2003, o atual desafio é o território conquistado não ficar vazio, dada a partida dos jovens para outros locais em busca de oportunidades. "Havia mais de 600 famílias nos anos 1970. Hoje, somos cerca de 230", revelou Lino.

Por isso, a população clama por políticas públicas concretas - a exemplo de escolas, inclusive com oferta do ensino médio; fornecimento de água da CEDAE; política habitacional; política cultural; supermercado; transporte diário para trabalhadores e moradores da Ilha; possibilidades de ganhos econômicos para a sobrevivência. 

"O TAC limita a comunidade em vários aspectos, mas tem que ser visto como um momento da luta, porque garantiu a declaração do território como comunidade quilombola e, a partir daí, temos que exigir políticas públicas", disse Aline.

Outras articulações 

De acordo com Aline Caldeira, a política quilombola no Brasil caminha em paralelo a história da Marambaia. Até recentemente, a única garantia legal era assegurada pelo Artigo 68 dos Atos das Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição Federal de 1998, que determina que o Estado emita título de propriedade aos quilombos. No entanto, não explicita como e quais órgãos estaria a frente do direito à posse coletiva da terra. "Em muitos estados, esse artigo permaneceu como letra morta", informou Aline.

Além disso, a docente menciona a disputa envolvendo o decreto 4887/2003, que regulamenta o procedimento para identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos. Tal decreto esteve ameaçado após o Partido da Frente Liberal (PFL), atual Democratas (DEM), ter ajuizado a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 3239 - o que foi julgado improcedente pelo Supremo Tribunal Federal em 2018. "Temos articulado a ida do Ministério da Igualdade Racial, do Ministério da Saúde, e do Ministério dos Direitos Humanos à Ilha da Marambaia", afirmou Aline.

Para ela, é compromisso social da Universidade fortalecer essa luta, tal como tem sido feito no âmbito dos projetos de extensão "Núcleo de Pesquisa e Extensão sobre Projetos Societários, Educação e Questão Agrária na Formação Social Brasileira (NEPEQ/UFF)", coordenado por Jacqueline Botelho, Valéria Bicudo, Maria Das Graças Lustosa (todas da ESS/UFF) e Aline Caldeira (UFRJ), e "Por uma noção ampliada do direito ao território quilombola (DATEQ/UFRJ)", coordenado por Aline Caldeira.

Da Redação da Aduff 
Por Aline Pereira
Foto: Luiz Fernando Nabuco

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