Jun
20
2023

Professor em greve explica por que o Novo Ensino Médio é ruim: 'É parte de um golpe e de uma mentira'

Terceira e última parte da entrevista com o professor Pedro Mara, doutor pela Faculdade de Educação da UFRJ, e que integra o Comando de Greve da rede estadual de ensino no Rio de Janeiro, movimento que defende a revogação do Novo Ensino Médio

O professor Pedro Mara, durante assembleia de greve no Circo Voador, no Rio O professor Pedro Mara, durante assembleia de greve no Circo Voador, no Rio / Luiz Fernando Nabuco/Aduff

Terceira e última parte da entrevista com o professor Pedro Mara, doutor pela Faculdade de Educação da UFRJ, e que integra o Comando de Greve da rede estadual de ensino no Rio de Janeiro

Para o professor Pedro Mara, o Novo Ensino Médio é uma mentira e parte de um golpe. Nesta parte da entrevista à reportagem da Aduff, o professor da rede estadual de ensino no Rio de Janeiro, que está em greve desde 17 de maio de 2023, explica porque o movimento defende a revogação deste modelo. 

Também aborda o impacto da implantação entre docentes, onde, diz, a insatisfação aumentou, e entre estudantes, que, avalia, ainda não estão bem informados sobre o que representa essa proposta, adotada 'sem qualquer diálogo ou debate'. 

Aborda ainda a ideologia do empreendimento, um dos pilares do modelo. "É mais uma palavra, um cavalo de tróia, um canto de sereia", vendido como solução, porém, na prática, avalia, "uma gestão da pobreza" que esvazia "a escola do seu conteúdo crítico".

E afirma que o Novo Ensino Médio criará um abismo ainda maior, um apartheit, entre a escola de ricos e de pobres, afastando estes últimos ainda mais das universidades. Um dos motivos, menciona, é a redução de tempos de disciplinas. "Você tem professores que deixaram de ser professores de disciplinas. Você tem uma maioria de professores que não dá mais a sua disciplina de origem: Matemática, Química, Física, Biologia, Sociologia. As pessoas estão pegando de um tudo", explica.

A seguir, o terceiro e último trecho da entrevista com Pedro Mara, professor de Sociologia que leciona na Escola Estadual Jornalista Tim Lopes, no Complexo do Alemão, concedida ao jornalista Hélcio Lourenço Filho:

ADUFF: Por que o Novo Ensino Médio é ruim? Por que tantas entidades, tantos setores, que debatem a educação, que estudam a educação, estão defendendo que ele seja revogado?

PEDRO MARA: O Novo Ensino Médio é parte de um golpe contra a classe trabalhadora desde 2016. A reforma do Ensino Médio acontece na esteira dos golpes que aconteceram a partir de 2016, neste país, contra a população mais pobre e trabalhadores. O principal problema dela é que distancia cada vez mais os estudantes da universidade. Outra grande razão é porque o diagnóstico que ela [a reforma] faz é absolutamente terrível. Ela elimina e diminui o tempo de disciplinas absolutamente necessárias, sem dizer que o problema do Brasil era o pouco ensino de língua portuguesa, de matemática. A reforma do Ensino Médio, no Rio de Janeiro, diminui esses tempos e de todas as outras disciplinas. Em troca disso, ofereceu coisas nas quais não se sabia nem o que era. Se faz um monte de coisa que empobrece a formação. Isso vai criar cada vez mais um apartheid entre os pobres e os ricos. Enquanto as escolas da ponta, da elite, ampliaram tempos, nós tivemos uma substituição de disciplinas com o mesmo tempo a partir de uma lógica de itinerário formativo de uma falsa liberdade. Por quê? Porque se apresentou e se vendeu a ideia de que o aluno poderia escolher isso, isso e aquilo, disciplinas eletivas, quando, na verdade, boa parte dos municípios do interior do Rio tem pouquíssimas escolas.

Então é mentira que se venderia diversos itinerários formativos. A gente tem várias razões para poder ser contra a reforma no Ensino Médio e pedir a sua anulação. A distância que ela cria, a desigualdade, o dualismo individual da educação, que sai muito pior. Então, por essas razões todas, a gente está se posicionando contra a reforma do ensino médio. Nós tivemos professores que começaram disciplinas que não se sabia nem o que era. Inclusive eu. Peguei disciplinas que eu digo: cara, para que serve isso? Exemplo: o debate de política. É um debate absolutamente necessário. É o debate que está na LDB [Lei de Diretrizes e Bases da Educação], a formação de cidadãos críticos e conscientes. Você teve um apagamento inteiro das discussões de política, porque se tenta formar um indivíduo não mais crítico, mas que apenas aceite. O debate sobre a educação financeira, formando as pessoas não mais para questionar a pobreza, mas poder fazer uma melhor gestão da própria pobreza. Isso, para nós, é muito longe da escola que a gente está querendo construir. Uma escola crítica, emancipadora, uma escola que forma cidadão, que coloque o aluno na universidade.

Para gente que está lidando com a periferia, com as favelas, o nosso principal desafio para mudar essa realidade é colocar o aluno na universidade. Pelo menos eu acho que é o estudo e o trabalho que vão mudar a vida das pessoas, muito mais do que qualquer outra ideologia de empreendimento. A ideologia de empreendimento, hoje, na minha opinião, está muito mais num campo ideológico do que num campo científico. É mais uma palavra, um cavalo de tróia, um canto de sereia. Você faz só uma gestão da pobreza. Você não critica, você não pensa e você esvaziou a escola do seu conteúdo crítico.

ADUFF: Você disse que os itinerários formativos, na prática, não existem. Porque cada escola pode oferecer no mínimo dois e na prática não existe essa opção de escolha por parte do aluno. Por outro lado, também há essas disciplinas muito questionáveis, há falta de professores formados para isso, em condições de aplicar essas disciplinas. Aí eu pergunto: se houvesse tudo isso, a reforma seria boa?

PEDRO MARA: Isso não haveria. Porque a reforma foi feita sem diálogo; sem nenhum tipo de conversa; com consultas na Secretaria de Educação, que não aconteceram, que era um formulário do Google num período muito duro [em termos] de diálogo, de construção, de reorganizar a política pública, que foi o período da pandemia. Então, você pegou o pior período para fazer qualquer tipo de mudança de qualquer tipo de política. Seguindo uma reforma autoritária, um itinerário que tem um erro no início, que é você substituir as disciplinas científicas por coisas eletivas que na época não tinham sequer ementa. Você tem professores que deixaram de ser professores de disciplinas. Você tem uma maioria de professores que não dá mais a sua disciplina de origem: Matemática, Química, Física, Biologia, Sociologia. As pessoas estão pegando de um tudo. Numa secretaria que habilitou todo mundo, antes disso, para dar tudo. Eu, mesmo formado em Ciências Sociais, à revelia sou habilitado em Filosofia e em Geografia. E, habilitado para dar todas essas eletivas.

ADUFF: Qual eletiva, por exemplo?

PEDRO MARA: Eu pego uma eletiva chamada Direitos Humanos e Cidadania. Esse é um debate super importante, até não é uma eletiva chata. Não é assim. Qual o problema disso? Isso era uma parte da Sociologia, a política é uma coisa que a gente via em um bimestre. Podemos ver a teoria do Estado, o Estado moderno, a formação dos Estados nacionais, tudo isso em um bimestre. Agora, eu tenho seis tempos, numa mesma turma, para discutir um assunto relativo a isso. Então, obviamente, você perdeu muito tempo nisso e tirou de outras disciplinas. Só que essa é uma disciplina das menos horríveis. Há outras, por aí, brigadeiro [bem piores - uma escola ofereceu curso de fazer brigadeiro como matéria do itinerário formativo]. O problema é que ela é muito chata se você tiver que pegar um aluno para dar seis tempos seguidos daquilo. Vai ficar maçante e fica. Você tira, empobrece outras discussões, que poderiam ser feitas de forma muito melhor. Porque isso tudo era conteúdo de Sociologia. Se fosse para discutir isso, a gente não precisava fazer uma reforma do Ensino Médio, porque isso já estava previsto. Só que se fez isso de forma autoritária. Ninguém soube, ninguém foi convocado, você não teve diálogo; e você fez uma reforma, que além de autoritária, ela aprofunda uma exclusão. E, obviamente, porque ela aprofunda uma exclusão, ela é autoritária. São coisas que caminham juntas.

ADUFF: Alguns professores me relataram que esse ano havia aumentado muito a insatisfação entre os professores por conta da reforma [em 2023] entrar no segundo ano do Ensino Médio e, ano que vem, será o terceiro. Isso teria atingido mais forte os professores e gerado insatisfação com relação a essas disciplinas, pois o professor seria obrigado a aceitar ou, se ele não aceita, a depender da situação, teria que buscar turma em outro colégio para completar a grade de horário. Pode falar um pouco sobre isso? E entre os estudantes, também gerou insatisfação? 

PEDRO MARA: Entre os professores, você teve a redução em todas as disciplinas. Todas as disciplinas tiveram perdas. Em Sociologia, a gente teve um movimento na última greve, em 2016, em que a gente conquistou nenhuma disciplina com menos de dois tempos. Sociologia, Filosofia, Artes, tudo isso. Agora todo mundo teve redução, só que isso gerou no estado um problema contraditório: ao mesmo tempo em que faltava professor, sobravam professores. Então, por exemplo, Sociologia cai, obrigatoriamente, no Ensino Médio, dos três anos para apenas um. Apenas no terceiro, sobra o segundo e sobra o primeiro. Então, eu sou obrigado, para não procurar uma outra escola, a aceitar aquele catálogo de eletivas. Essa foi a minha realidade: uma disciplina que não é das piores, mas eu peguei porque eu não tinha outra opção. Se eu não pegasse isso, quisesse manter só Sociologia, ia ter que procurar, talvez, quatro ou cinco escolas para dar aula. Isso ficou muito mais evidente neste ano, porque no ano passado a reforma começou no primeiro ano, as pessoas não sentiam. Este ano, ela chega a dois terços da rede. No ano que vem, ela estará completa, ou não estará. Porque eu tenho esperança de que possa reverter esse procedimento.

Isso gera esse processo: você tem professores que sobram e que faltam. Sobram porque a sua disciplina, todas, foram reduzidas. Você tá sobrando e, ao mesmo tempo, você tá faltando, porque o cara tem que ser habilitado em um monte de coisa. Na maior parte das vezes, sem informação para aquilo. Quanto aos alunos, eu acho que talvez a gente ainda tenha uma dificuldade… e eu falo isso num balanço coletivo do conjunto dos profissionais, dos sindicatos: eu acho que a gente falhou no debate de convencimento dos outros setores a compreender que o [Novo] Ensino Médio é uma grande tragédia. Esse é um ponto que eu acho que a gente, talvez, tenha falhado. Então, você tem uma indignação até um certo ponto sobre um Novo Ensino Médio entre os alunos. Eu não consegui, ainda, ver um movimento dentro da rede estadual que questionasse isso com uma ampla adesão. Você tem um movimento muito importante das entidades estudantis questionando isso. Mas ainda acho que o debate não ganhou o conjunto das salas de aula. Isso é um desafio que a gente tem, pedagógico, e agrega, e é super importante para isso sair convencendo as pessoas do quanto esse projeto é excludente. 

ADUFF: Se fala da questão desse apartheid e de que uma camada ampla da juventude não terá, já não tem hoje, terá menos ainda acesso à universidade. Explica um pouco isso.

PEDRO MAIA: A gente está falando da rede estadual como uma das principais redes, que pega 700 mil alunos. Obviamente que quando a gente fala do setor privado, a gente fala de uma coisa que não é unitária, que tem diferenças entre elas. Mas quando a gente compara as escolas de ponta, particulares, elas não fizeram uma redução de tempo, elas fizeram uma ampliação. Enquanto a gente teve uma redução de tempo e de disciplinas que eram fundamentais, que outros colégios não tiveram. Isso coloca o nosso aluno numa situação de atraso. Se já era difícil entrar mesmo ele assistindo tempo de Sociologia, de Filosofia, de Química, de Matemática, de Física, [imagina] com menos tempo e substituindo por coisas que não tem sentido nenhum, e que o próprio aluno sabe que aquilo não tem sentido e que aquilo não vai sequer reprová-lo...

ADUFF: No Colégio Pedro II, e acredito que nos colégios de aplicação e institutos da rede federal seja similar, praticamente não se iniciou a implantação do Novo Ensino Médio. Acredito que [nestas instituições] as que estejam aplicando, estejam num ritmo muito menos acelerado e com características diferentes das da rede estadual. O que você diria com relação a esses setores? Eles estão a salvo do Novo Ensino Médio? Ou eles também correm esses riscos que você está listando aqui?

PEDRO MARA: Você tem uma tradição democrática, talvez, muito maior na rede federal. A gente tem uma tradição democrática que não se compara na rede federal em relação à rede estadual. A gente tem, também, uma capacidade de mobilização maior nesse lugar. Numa categoria que, por exemplo, é escrava da GLP [Gratificação por Lotação Prioritária], que não pode deixar de fazer a hora extra, esse é um debate que, às vezes, se torna secundário. Por quê? Porque a gente tem uma rede de pessoas que está muito precária, onde elas têm menos capacidade de resistência. 

Então não acho que a rede federal esteja a salvo. Mas você tem uma capacidade, por ali, de resistência. É um projeto hegemônico, de classe, é um projeto excludente. Exemplo disso: em 2016 a gente teve uma greve e conquistou o [direito de concorrer à] direção de escola. Eu fui candidato, venci uma eleição e não teve mais. Aquela foi a única eleição que teve entre 2016 e 2017. De lá para cá, mandatos prorrogados, diretores de luta perseguidos, exonerados. Então você cria na rede uma relação de muito mais autoritarismo, em relação à tradição democrática que você tem, de eleição, de dirigentes nas instituições federais. Não é que elas estejam a salvo, eu acho que a democracia consegue colocar o debate do Novo Ensino Médio em um outro lugar nessas instituições. E eu desejo, novamente, toda a força para que elas possam resistir e construir alternativas possíveis.

ADUFF: Você estaria querendo dizer que nesses lugares há mais possibilidades, hoje, objetivas de resistência?

PEDRO MARA: Sim. 

ADUFF: Se não houver essa resistência…

PEDRO MARA: Elas são o bastião da resistência. Elas precisam continuar resistindo para que a gente continue tendo esperança. Para que a gente continue dizendo para as pessoas que é possível lutar [contra a reforma do Novo Ensino Médio]: ‘Olha o exemplo das unidades de instituições federais; olha isso’. Mas elas são nosso sopro, a nossa ilha de esperança, numa desertificação da classe dominante na educação. É isso. 'Todos Pela Educação', setores empresariais, parte da imprensa, dizendo que isso não é bem assim, que tem que ajustar. Nós, não. Nós temos que revogar esse projeto.

O professor Pedro Mara, durante assembleia de greve no Circo Voador, no Rio O professor Pedro Mara, durante assembleia de greve no Circo Voador, no Rio / Luiz Fernando Nabuco/Aduff

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