Abr
07
2017

ENTREVISTA: "Ainda temos muita luta pela frente", diz Lígia Tourinho em defesa da emancipação feminina

Docente da UFRJ  e atriz se apresentará na quarta-feira (12), no bloco G/ UFF – Campus do Gragoatá, com a peça “Bonecas Quebradas” – posicionamento artístico e político contra a violência de gênero na América Latina

Da Redação da ADUFF-SSIND
Por Aline Pereira
Fotos: divulgação/ Carol Spork

Na quarta-feira (12), será exibido o espetáculo “Bonecas Quebradas”, que problematiza o tema da violência contra as mulheres. Idealizada por Ligia Tourinho e Luciana Mitkiewicz, a peça será apresentada a partir das 18h, no auditório do bloco G (campus da UFF/Gragoatá-Niterói), a convite da direção da Aduff-SSind, como forma de homenagear a luta das mulheres pela emancipação, pelo direito à igualdade entre gêneros, pelo fim do feminicídio.

No mesmo dia, será realizado o lançamento do livro homônimo, “Bonecas Quebradas – Ensaios de um processo criativo em teatro documental”, também organizado por Lígia e Luciana, publicado pela editora Azougue em 2016. A obra apresenta textos de vários autores, além da peça na íntegra.

A noite termina com música: haverá a apresentação do grupo “Flor do Samba”, em confraternização na Aduff, celebrando as mulheres compositoras e intérpretes desse gênero.

Em entrevista concedida por e-mail à imprensa da Aduff-SSind, Ligia Tourinho explica que a ‘Bonecas Quebradas Teatro’ é uma produtora que foi fundada por Luciana Mitkiewicz, com o intuito de criar e desenvolver projetos autorais em teatro e dança, ligados ao tema do feminino. Em 2013, Ligia passou a integrar a sociedade, embora já estivesse atuando em vários projetos da companhia desde 2007. Montar o espetáculo que será apresentado à comunidade da UFF, na quarta-feira 12 de abril, era um sonho antigo da atriz.

Confira, a seguir, trechos da entrevista realizada com Lígia Tourinho, que também atua como docente na UFRJ – Universidade Federal do Rio de Janeiro (*).

Aduff-SSind: O que representa ser mulher e trabalhadora num país como o Brasil. O que te move e o que te aflige diante das questões de gênero?

Ligia Tourinho: Já percorremos um bom caminho e conquistamos muitas coisas, mas estamos há menos de 100 anos conseguindo mudar alguns comportamentos que vêm se estabelecendo desde a pré-história. Ainda temos muita luta pela frente. Enfrentamos batalhas a cada dia ao entrar no elevador, sair de casa, entrar nos meios de transporte... O nosso dia a dia é uma batalha cheia de episódios de desrespeito contra a mulher. Há muito desrespeito simbólico invisibilizado. Por exemplo: ontem eu estava fazendo musculação e estava tocando uma música que falava de “como a novinha é danada”. A novinha é a menor de idade. Atribuir a ela tanta sexualização, na minha opinião, é um crime contra o nosso imaginário, é banalizar e normalizar a pedofilia. Todos ouviam aquela música com naturalidade. Eu pedi para trocar a música. Eu sou a chata da academia. Acredito na revolução do imaginário, uma mudança que começa pelas narrativas, pelas imagens que povoam as nossas experiências desde a gestação. Acredito que as artes possuem um papel fundamental nessa mudança ou na manutenção dos valores estabelecidos, por isso, minha colaboração está na cena.

Aduff-SSind: O que a motivou a conceber a peça “Bonecas Quebradas”? Como o público tem recebido o espetáculo?

Ligia Tourinho: Bonecas Quebradas foram uma curiosidade que se transformou em desejo. Essa ideia foi concebida por mim e minha sócia e parceira de trabalho, Luciana Mitkiewicz. Luciana, já há um tempo, tinha o desejo de entrar em um processo de criação instigado pela imagem de Bonecas Quebradas. Começamos então a buscar ideias que estimulassem essa imagem.

O espetáculo é resultado de um processo colaborativo de construção de cena e dramaturgia, que se ampara em algumas fontes e referências, tais como: o conceito de cuerpo roto e de cuerpo sin duelo, apresentados por Ileana Diéguez Caballero em seus ensaios e palestras; a Isla de las Muñecas, na cidade do México, com suas imagens e lendas; bem como o conceito de objects-trouvés, de Tadeusz Kantor, com os qual as bonecas encontradas nos canais de Xochitlmilco (México) parecem dialogar.

A Isla de las Muñecas, localizada nos canais de Xochimilco – sul do centro de Cidade do México, perto do estádio de futebol Estádio Azteca – é um chinampa Lagoa Teshuilo e uma das principais atrações dos canais. Bonecas quebradas e danificadas de vários estilos e cores estão por toda a ilha, colocada inicialmente pelo antigo proprietário da ilha, Julian Santana Barrera. Ele acreditava que as bonecas ajudavam a afastar o espírito de uma menina afogada anos atrás.

O conceito de cuerpo roto, apresentado por Diéguez, trata de um conjunto de alegorias e representações, e de sua extensão em relação à dimensão da ausência, mais do que das implicações do ser morto. Trata de uma investigação do fragmento-rastro, daquilo que conta uma história de despedaçamento, de violência impingida. Em sua obra Cuerpos sin duelo: yconografias y teatralidades del dolor, a autora desenvolve o conceito acima, apresentando exemplos de obras artísticas que partem deste paradigma temático e lançam a ausência, o luto, os desaparecimentos da América Latina, como tema e paradoxo para as Artes da Cena, estas, fundamentalmente estruturadas a partir da presença do corpo.

Os rumos do projeto foram se delineando melhor e cercando com uma maior precisão a história dos feminicídios quando foi assinado o Acordo de Livre Comércio com os EUA (NAFTA). Desde 1994, são mais de quatro mil mulheres desaparecidas e mais de duas mil mortas em Ciudad Juarez.

Todos os crimes seguem o mesmo padrão: sequestro, violência sexual, morte por asfixia, perfurações corporais, esquartejamento e desaparecimento dos cadáveres. Poucos corpos são encontrados (por empreendimento particular, por parte dos parentes das jovens, muitas vezes). Quando localizados, geralmente em um período de tempo muito grande após o assassinato, encontram-se em um estado que impossibilita a investigação minuciosa. Sabe-se, por investigações de grupos independentes, que os culpados dos assassinatos em Juarez são homens muito poderosos, que continuam soltos, corrompendo o judiciário e ramificando-se pelos demais poderes estatais do país. Delegados e promotores buscam os chamados “bodes expiatórios” - quase sempre parentes das vítimas - num esforço para enquadrar tais homicídios na ordem da chamada “violência doméstica” ou dos “crimes passionais”.

A história de Ciudad Juarez, no México, na fronteira com El Paso, no território norte-americano é especificamente icônica. Desde 1993, contabilizam-se na região milhares de assassinatos de mulheres sem a devida punição. Uma situação sem precedentes, que levou, pela primeira vez na História, à condenação de um país – o México – na Corte Interamericana de Direitos Humanos. Todos os crimes seguem o mesmo padrão: sequestro, violência sexual, morte por asfixia, perfurações corporais, esquartejamento e desaparecimento dos cadáveres. Poucos corpos são encontrados e, quando localizados, geralmente em um período de tempo muito grande após o assassinato, encontram-se em um estado que impossibilita a investigação minuciosa. Os crimes estão prescrevendo, os mexicanos se sentem impotentes e o mundo não tem ideia do que se passa ali.

Há indícios de uma estranha ligação entre estado e narcotráfico. Muitas dessas mulheres são vítimas de rituais de iniciação ao tráfico e de orgias macabras de estupro e sacrifício.

Ao observarmos os casos de feminicídio no Brasil, verificamos que nossos dados quantitativos não estão distantes dos dados mexicanos e que a situação dos desaparecimentos e dos assassinatos de mulheres também faz parte de uma teia política e econômica. Todas as desigualdades colaboram com o aumento do abismo entre os direitos dos homens brancos e héteros e dos demais indivíduos que possuem outras escolhas de gênero.

“Bonecas Quebradas” fala desta trama e tem sido recebida com muito impacto. A solução não está apenas em vencer o machismo, afinal o machismo está inserido em uma trama de desigualdades.

“No México, a cada 3 horas uma mulher é assassinada sob extrema violência. No Brasil, a cada 1 hora e 30 minutos uma mulher é vítima de violência masculina. O quanto olhar o outro é um espelho de nossa própria realidade?”.

Aduff-SSind: De acordo com dados da Organização Mundial de Saúde, no Brasil a taxa de feminicídio é de 4,8 para cada 100 mil mulheres - a quinta maior do mundo. Em que medida você acha que a peça pode contribuir para dar visibilidade a esse problema e reduzir a violência contra as mulheres?

Ligia Tourinho: “Bonecas Quebradas” relaciona os crimes de gênero a uma teia política e econômica. Esses números são resultados dessa teia. Umas das grandes inquietações sobre este projeto percorreram a esfera poética e política de como articular e engajar a obra de arte nos dias de hoje. Como é o engajamento imagético-político deste projeto criativo? A patologia liberta pela força do devir teatral das bonecas quebradas foram os feminicídios. As bonecas quebradas nos levaram aos corpos das mortas de Juarez, abandonados pelo deserto ao léu e a total impunidade. O ato criativo deste processo de criação testemunhou essa guerra que muitos insistem em denominar como invisível.

No México, a cada 3 horas uma mulher é assassinada sob extrema violência. No Brasil, a cada 1 hora e 30 minutos uma mulher é vítima de violência masculina. O quanto olhar o outro é um espelho de nossa própria realidade?

Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), o Brasil é o quinto país num grupo de 83 países com dados homogêneos, em índices que excedem significativamente os encontrados na maior parte dos países do mundo (<http://www.mapadaviolencia.org.br/pdf2015/MapaViolencia_2015_mulheres.pdf> página 27). Em uma tentativa de combater estes dados, o país também avançou em sua legislação em defesa às mulheres aprovando legislação específica.

Mas a pesquisadora e ativista Rita Segatto adverte que a violência contra a mulher no Brasil está saindo do espectro da violência doméstica, íntima, e adquirindo este novo formato: bélico. Os dados oficiais Brasileiros são resultados dos registros de ocorrência policial. Não há um cruzamento de informações entre o que está nesta instância e as entradas em hospitais e casas de assistência à mulher. Esses dados são informações sobre o que foi denunciado, mas muitos crimes ficam apenas na anunciação íntima, inscritos do corpo das vítimas e não compõem as estatísticas da violência.

Alguns casos de violência bélica chegam aos nossos ouvidos como episódios esporádicos. É sabido por todos os limites impostos ao gênero feminino no país e no mundo: jovens moradoras de comunidade sabem que serão forçadas a dizer sim para um traficante, caso ele se interesse por ela. As mulheres indígenas estão há séculos sendo abusadas e assassinadas pelo homem branco. Essas são histórias que se repetem todos os dias...

"Não faremos uma revolução feminista enquanto nossas crianças estiverem vestidas de fantasia de princesa no colo das babás negras com uniforme branco”

Aduff-SSind: Vivemos um momento em que discursos e práticas conservadoras avançam em muitos campos... Qual a perspectiva para o futuro? Você acha que a arte pode sensibilizar a sociedade para que vivamos todos de forma mais respeitosa e fraterna?

Ligia Tourinho: Apesar do terrível momento político que enfrentamos, continuo em luta por dias diferentes, com plena fé em uma revolução que parte do empoderamento das minorias e da transformação do imaginário. Para mim, a sala de aula é um espaço de revolução igualmente poderoso ao espaço da cena. Todos os dias minhas ações correm nesse sentido, fazendo arte dentro e fora da Universidade e acreditando que ao gerar uma mínima transformação individual produzimos ali uma transformação em cadeia.

A expansão da Educação gerada nos governos anteriores não conseguirá ser desmontada em um ano, temos uma força que é a expansão desse corpo em processo educacional. Nos últimos 12 anos, muitas famílias tiveram pela primeira vez um ente na universidade e isso gera uma mudança em cadeia para todo o entorno dessas pessoas. Nesse momento acredito que esta força deve ser somada às demais: ir para a rua, assinar abaixo-assinados, promover debates e atividades de transformação.

O desejo de mudança e esperança é o que nos move e eu não acredito em nenhuma transformação que não comece pelo imaginário. Não conseguiremos uma nova realidade para as mulheres enquanto continuarmos a repetir as histórias de princesas frágeis e privilegiadas. Precisamos parar de vestir as nossas meninas de princesas da Disney. As bonecas das meninas brasileiras são as Abayomis. Enquanto existirem as princesas, existirão os serviçais. Não faremos uma revolução feminista enquanto nossas crianças estiverem vestidas de fantasia de princesa no colo das babás negras com uniforme branco. Uma verdadeira revolução só é possível a partir da autonomia, da igualdade e de uma mudança do imaginário.

* Lígia Tourinho é atriz, coreógrafa e pesquisadora em Artes da Cena, doutora em Artes (Unicamp), professora do Departamento de Arte Corporal da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, atuando como vice-coordenadora do Bacharelado em Teoria da Dança. É ainda professora convidada da pós-graduação em Laban da Faculdade Angel Vianna (FAV-RJ). Ministra aulas nos cursos de Bacharelado em Dança, Bacharelado em Teoria da Dança, Licenciatura em Dança e Direção Teatral. É artista do movimento, coreógrafa e idealizadora do ‘Jogo Coreográfico’ -  projeto de Dança, Improvisação e Interatividade premiado em países como o México e o Uruguai e já apresentado em diversas cidades brasileiras.