Mar
25
2024

'Precisamos multiplicar nossos referenciais epistemológicos: pensar outras formas de ver o mundo', diz Flavia Rios sobre educação antirracista

Professora e socióloga mencionou, no debate da Aduff, que biblioteca da UFF não oferece autores negros e indígenas indispensáveis para a compreensão das bases históricas e sociais no Brasil

A roda de conversa "Universidade e o Combate ao Racismo", organizada pelo Grupo de Trabalho de Política de Classe para as Questões Etnicorraciais, de Gênero e Diversidade Sexual (GTPCEGDS) da Aduff-SSind, convidou a professora Flavia Rios,  professora e pesquisadora da Universidade Federal Fluminense, para oportunizar reflexões sobre o tema, na tarde do último dia 20, no Coluni - Colégio Universitário Geraldo Reis. A atividade se somou às iniciativas pelo Dia Internacional pela Eliminação da Discriminação Racial (21 de março) e pela campanha "21 Dias de Ativismo contra o Racismo", quando entes da sociedade civil, organizações e movimentos sociais, sindicais e populares promovem ações para refletir sobre o assunto.

Socióloga, Flavia Rios é atualmente diretora do Instituto de Ciências Humanas e Filosofia da UFF. É coautora do livro "Lélia Gonzalez" (Summus, 2010) e coorganizadora dos livros "Negros nas Cidades Brasileiras" (Intermeios/FAPESP, 2018) e "Por um feminismo afro-latino-americano" (Zahar,2020) e "Raça e Estado" (Eduerj, 2022) e "Dicionário das Relações étnico-raciais contemporâneas" (Perspectiva, 2023).

Incialmente, ela comentou sobre as atividades antirracistas realizadas no âmbito do Coluni, em conjunto com docentes e estudantes que integram o Núcleo de Estudos Guerreiros Ramos (N.E.G.R.A.). Mencionou a iniciativa do "Pibiquinho" - atividade de iniciação científica que reúne graduandos em Ciências Sociais e estudantes do Ensino Médio, sob a coordenação do professor Thiago Martioli, que ensina Sociologia no referido colégio.

Flávia também saudou o sindicato de professores da UFF por se envolver na pauta antirracista na Universidade, lembrando de importante contribuição da Aduff-SSind para aplicação da Lei 12990/2014 - a que garante reserva de 20% das vagas para candidatos negros em concursos públicos no âmbito da administração pública federal, quando o número em ofertas for igual ou superior a três vagas.

Em 2019, a partir desse movimento conjunto, foi possível pressionar a administração central da UFF para suspender a realização de um concurso com mais de 80 vagas que não garantiria a aplicação da Lei 12.990. "Conseguimos barrar aquele processo e desde então a universidade vem garantindo a reservas de vaga. Se a Aduff-SSind não tivesse abraçado essa demanda das e dos professores, não teríamos conseguido a audiência na reitoria, porque a reitoria só assumiu a audiência porque o sindicato abraçou a ideia", afirmou. Veja mais

Niterói: cidade segregada

De acordo com Flávia Rios, Niterói conta com aproximadamente 500 mil habitantes e tem um dos maiores Índices de Desenvolvimento Humano (IDH) entre as cidades do país. No entanto, se caracteriza por acentuada desigualdade social e segregação racial - o que também pode ser percebido em incursões que ela tem feito em  escolas municipais  distantes da área central. "Nas periferias, sequer as classes se encontram; e muitas pessoas não conseguem exercer o direito ao uso dos equipamentos públicos da cidade", constatou ao saber que um dos sonhos de estudantes em área de maior vulnerabilidade econômica é atravessar de barca para o Rio de Janeiro. "Pegar uma barca é ter o direito à cidade; é ultrapassar os limites dessa segregação", considerou a professora. 

Flávia integra um Grupo de Trabalho constituído pela Câmara Municipal para verificar denúncia do Ministério Público sobre a não aplicação das legislações 10.639 e 11.645, nas escolas de Niterói. As leis determinam, respectivamente, a obrigatoriedade do ensino de história e cultura africana e afro-brasileira; e o ensino de história e cultura dos povos originários, durante o ensino fundamental e médio.

"Estamos visitando os polos em que estão organizadas as 94 escolas no município para produzir esse relatório e observando o que tem se deixado de fazer no tocante à educação antirracista. E nós, na UFF, como a principal instituição de ensino superior na cidade e na região, somos responsáveis pela formação desses educadores e desses cidadãos", disse a docente. "Ainda que haja muito boa vontade por parte de certos professores, de alguma direção e coordenação pedagógica, as leis 10.639 e 11.645 estão muito, muito distantes de serem realizadas. Sabe como é a política antirracista na cidade? É professor antirracista comprando material do próprio bolso e levando para a escola, porque se não, não tem. E para se fazer uma educação antirracista, você precisa de formação continuada  aos docentes e gestores e, sobretudo, recursos pedagógicos- filme, livros didáticos, boneca não estereotipadas, lápis de cores diferentes para mostrar diversidade humana, a fim de combater tanto preconceito", complementou, lamentando o pouco diálogo com a Secretaria de Educação de Niterói.

Para ela, é necessário que a Aduff e a UFF se entendam inseridas neste contexto. "Não só o sindicato, mas as universidades públicas têm esse desafio de olhar também para essa realidade concreta de desigualdade e de segregação. É fato que o Brasil, hoje, é muito mais democrático do que no século 20 e que, na universidade, atualmente, ingressam mais alunos negros no ensino superior. Isso é verdade, mas mesmo assim as famílias mais vulneráveis estão muito, muito distantes das universidades brasileiras", afirmou.

Ascensão da extrema-direita no contexto neoliberal

Para Flávia Rios, é preciso que o sindicato e a universidade estejam atentos ao que representa a ascensão da extrema-direita no país e no mundo. A docente reconhece a importância da derrota do candidato ultraconservador ao executivo federal, nas últimas eleições. No entanto, aponta para a necessidade de mais representantes progressistas no legislativo e nos cargos municipais. "Vimos o último ato político em defesa do bolsonarismo, de grandes proporções. E não podemos diminuir isso, pois estamos num cenário ainda mais agressivo, que envolve o neoliberalismo e a sua defesa de estado-mínimo, além do projeto ultraconservador marcado pelo discurso do controle dos corpos e dos costumes", apontou.

Segundo a socióloga, o neoliberalismo e os políticos de extrema direita elegeram os funcionários públicos como inimigos, o que se justifica por políticas de cortes no orçamento de políticas sociais, a exemplo da Saúde e da Educação. Para ela, esse sistema econômico que condena o estado de bem-estar social se revela também de forma subjetivada a partir do momento em que a população incorpora uma dada falta de perspectiva de futuro. "Jovens das classes populares ingressam nas universidades - entre negros, indígenas, pessoas trans - e muitas vezes não veem expectativa no mercado de trabalho. Qual a perspectiva de trabalho? Muito baixa, sobretudo por conta do contexto global, cuja realidade latino-americana tem mais de 40% de informalidade. É um cenário muito dramático, porque não é só ingressar na universidade, mas diz respeito também à expectativa após a conclusão do curso", comentou.

No avanço do debate no Coluni, a professora também comentou sobre a conjuntura pós pandêmica. De acordo com ela, após  a pandemia da covid 19, houve uma modificação nas relações de trabalho a partir de uma dinâmica que favoreceu a realização de reuniões virtuais e atividades remotas - o que, na visão da pesquisadora, também contribui para a precarização do  atendimento no setor público e impacta as relações cotidianas de diferentes maneiras, dificultando o diálogo coletivo para pensar as potencialidades da luta política. "Considero esse ponto muito importante porque somos a classe que organiza o sistema educacional", avalia. "Estamos recebendo as classes populares no ensino superior de forma nunca vista na história do Brasil. É um momento contraditório porque precisamos lutar pelos nossos direitos e, ao mesmo tempo, assegurar os direitos daqueles grupos que também fazem parte dessa realidade", argumentou.

21 Dias de Ativismo contra o Racismo e sua prática cotidiana

Para Flávia Rios, a campanha "21 Dias de Ativismo contra o Racismo" precisa estar relacionada ao debate sobre o avanço do neoliberalismo, sobre a precarização das condições de estudo e de trabalho na universidade, sobre a luta grevista e a presença negra na instituição. "Costumo dizer que a política se faz no congresso, nos municípios, na universidade. E essa campanha de combate ao racismo tem que estar conectada com esse debate, com os desafios postos na cidade em que vivemos; não pode estar desvinculado do local em que trabalhamos", disse.

Segundo a socióloga, no momento em que servidores técnicos-administrativos estão em greve e que docentes sinalizam a possibilidade de adesão à paralisação por tempo indeterminado, é preciso estabelecer um diálogo com as e os trabalhadores terceirizados nas instituições. Ela comenta o fato de as pessoas negras serem a maior parte desses funcionários com contratações e condições de trabalho mais vulneráveis. "Esse é um grande desafio. E fico pensando o quanto seria importante a temática racial ser considerada nesses processos mobilizadores do momento. Uma parte expressiva dos nossos técnicos-administrativos são pessoas pretas e pardas e esse percentual é maior ainda entre os terceirizados. Muitos não entendem porque os servidores concursados fazem greve, pois trabalham 10 horas por dia em ambientes insalubres, descansam seus 30 minutos em lugares úmidos, sem ventilador, em pé. Há terceirizados que se alimentam nos banheiros", revelou. "Se a gente não conversa com os terceirizados, que são pessoas que estão nas 'franjas' do capitalismo, com quem a gente vai conversar? Com a grande mídia? Então, a gente tem esse desafio", complementou.

Interseccionalidade na luta

A convidada criticou uma tendência entre setores da esquerda em apartar a discussão de gênero e de raça da luta de classes, subalternizando as diferentes opressões coloniais e patriarcais, como se não fossem questões centrais para a sociedade. "Precisamos nos aprofundar nesse debate, que é teórico, político, e exige dados de investigação para entender a natureza desses problemas e dessas ideologias que vão se difundindo como 'cortina de fumaça'. Parece uma análise crítica, mas na verdade é pura reprodução de um discurso simplificador, considerando o Brasil ter vivenciado quase 400 anos de escravidão e importado grande massa de trabalhadores majoritariamente analfabetos, famintos e praticamente expulsos dos países europeus", argumentou sobre a complexidade do tema.

Flávia Rios lembrou também que o conflito no Oriente Médio envolvendo judeus e palestinos tem origem no Colonialismo, que este não se limita ao debate sobre escravidão. "É o que está acontecendo entre Israel e Palestina. É uma luta colonial em pleno século 21. Então, o colonial é uma coisa arcaica que precisa ser superada, mas que existe no curso da nossa história, junto com as lutas anticapitalistas. O anticolonialismo é também a luta anticapitalista, antipatriarcal, antiheteronormativa. Sei que comecei com foco em Niterói, a cidade mais segregada do Brasil, e cheguei lá no genocídio de Israel contra os palestinos. Mas querendo ou não, isso tudo está conectado", afirmou.

"Precisamos refletir porque se o Donald Trump ganhar as eleições nos Estados Unidos, isso terá um impacto fortíssimo aqui no Brasil, no que acontece em Israel e na Palestina, na situação dramática de Cuba... Terá impacto da guerra entre a Rússia e a Ucrânia. Então, nós estamos vivendo num mundo, hoje, em que precisamos renovar as nossas esperanças e utopias em um cenário muito difícil, muito complexo. Não queria concluir esse debate com uma fala catastrofista, até porque me considero uma pessoa otimista, que tem a 'esperança como disciplina'", ponderou. 

Novas epistemologias

Durante a roda de conversa, Flávia Rios contou uma curiosidade acerca da Biblioteca Central do Gragoatá, no campus da UFF em Niterói, que está prestes a comemorar trinta anos de existência. Disse que há 40 coleções do importante historiador inglês Eric Hobsbawm, embora quase não existam exemplares de autores negros necessários à compreensão das bases históricas e sociológicas do Brasil, como os trabalhos de Guerreiro Ramos, Clóvis Moura, Lélia González, entre outros. Não existem as obras completas de pensadores clássicos afrodiaspóricos, à exemplo do martinicano Franz Fanon e da norte-americana Angela Davis.

"É preciso uma conscientização da comunidade universitária para que os docentes incluam em suas aulas autores indígenas, negros, mulheres e quilombolas. Se a gente não tem no currículo, também não terá na biblioteca. A consequência é muito mais grave do que a gente imagina. Precisamos olhar esses autores e autoras que estão pensando a partir de outras epistemologias, ontologias, outras formas de ver o mundo, para renovar as nossas bases de conhecimento", defendeu Flávia.

"Se eu somente leio o que o Ocidente escreveu, tenho um horizonte limitado; então, temos que olhar com mais seriedade para essas produções que aconteceram à margem e contra o processo colonial. Mais responsabilidade para essas produções e para essas experiências, para pensarmos que tipo de mundo queremos que os nossos filhos, netos e bisnetos habitem. Precisamos, de fato, mudar os nossos referenciais; não abandoná-los, mas sim multiplicá-los, diversificá-los, pluralizá-los e realmente levar a sério essa corrente contrahegemônica para não se deixar levar pela correnteza", concluiu.

Da Redação da Aduff
Por Aline Pereira (texto) e Luiz Fernando Nabuco (fotos)