Mar
09
2024

'Um dedo no olho do furação reacionário': mulheres avaliam os impactos do direito ao aborto na Constituição da França

Reportagem da Aduff conversou com mulheres - técnica, docentes, estudante, ex-bancária assistente social - sobre a recente decisão do Parlamento francês de incluir a decriminalização e o direito ao aborto na Constituição do país

 

Detalhe do ato desta sexta-feira (8), no Centro do Rio Detalhe do ato desta sexta-feira (8), no Centro do Rio / Luiz Fernando Nabuco/Aduff

Na semana em que manifestantes vão às ruas pelo 8 de março, ‘Dia Internacional de Luta das Mulheres’, uma decisão histórica animou tantas outras pelo mundo afora: a França se tornou o primeiro país no mundo a garantir o direito ao aborto na Constituição. A decisão foi aprovada com 780 votos favoráveis e 72 contrários em sessão conjunta no Palácio de Versalhes, no sábado (4), e ainda teve o simbolismo histórico de entrar em vigor nesta sexta-feira, 8 de março de 2024.

“Essa é uma notícia [muito] relevante, vai direto ao ponto. Bota o dedo no olho do furacão reacionário que é o ataque à autonomia da vontade e à emancipação das mulheres”, dispara Glória Vargas, ex-bancária e assistente social aposentada da Justiça, que já integrou a diretoria do Sindicato dos Bancários do Rio de Janeiro. 

Para ela, o ataque ao aborto protagonizado pelas bancadas conservadoras com assento no legislativo brasileiro nada tem a ver com defesa da vida. Tem a ver com o desejo de controlar e dominar a vida das mulheres em geral. “As mulheres francesas entenderam que nessa confrontação atual nós somos o alvo privilegiado e foram pra cima”, afirmou Glória.

Imagens do ato no Rio e da concentração em Niterói: referências à luta pela legalização do direito da mulher ao aborto - acessar aqui

Um em cada sete mulheres já abortaram no Brasil

No Brasil, as mulheres também têm "ido pra cima", apesar de ainda terem que percorrer um longo caminho pelo direito à saúde reprodutiva, diante da crescente interferência de movimentos religiosos na política.  

O direito ao aborto legal e seguro em hospital público é uma das reivindicações feministas que reverberam com força em 8 de março. “Uma em cada sete mulheres brasileiras já fizeram um aborto. (...) A cada duas horas uma brasileira morre por aborto inseguro”, diz o panfleto distribuído pela organização do 8M em Niterói, no Centro da cidade, em frente à Estação das Barcas, durante a concentração para travessia conjunta ao ato unificado na Candelária. 

Entre as manifestantes estavam estudantes, técnicas-administrativas e docentes da Universidade Federal Fluminense — algumas integrantes da diretoria da Aduff-SSind. “Sou mãe e falo com propriedade: sofri três abortos espontâneos antes dos gêmeos nascerem”, revelou Alessandra Primo, que integra a coordenação do Sindicato dos Trabalhadores em Educação da UFF – Sintuff.

 “Eu era casada, queria engravidar. E a cada vez que eu chegava na emergência da maternidade, perdendo o bebê que tinha planejado, eu era tratada como uma criminosa. Fui deixada por horas, aguardando atendimento, sangrando, até me darem analgésicos. Então, para que nenhuma mulher passe pelo que eu passei, querendo ou não ter a criança, é essencial que o aborto seja legalizado como política pública”, defendeu a trabalhadora.

De acordo com Alessandra, o aborto é uma garantia da mulher e uma decisão que somente pertence a ela. “Se ela quiser constituir uma família, ela precisa ter apoio para isso: fazer um pré-natal, ter vaga para a criança na creche e na escola. Se não quiser, tem que ter acesso aos meios contraceptivos. E ainda assim, em caso de uma gravidez não desejada, deve ter direito ao aborto legal e seguro, de preferência em hospitais públicos federais”, argumentou.

Segundo a coordenadora do Sintuff, o Hospital Universitário Antonio Pedro teria condições de realizar o procedimento, pois conta com profissionais qualificados. “No entanto, por decisão médica, não se toca essa pauta, não se atende a população de Niterói e redondezas para essa necessidade”, esclarece. 

Graduada em Serviço Social pela UFF, Taiane Alecrim afirmou que se a gravidez fosse coisa de homem cis, o aborto já teria sido legalizado no Brasil. “A sociedade precisa entender que direitos reprodutivos devem ser discutidos e respeitados. Mulheres e demais pessoas com útero têm o direito de optar por gerar ou não uma criança”, considerou.

Segundo Taiane, a legalização do aborto é emergencial no país, e deve ser tratada com seriedade, sem intervenção de pensamentos conservadores pautados por igrejas e dogmas religiosos. 

“O Estado não pode ser ditador de regra do que fazemos com nossos corpos. Defender o aborto é defender a vida das mulheres e pessoas com útero em geral, principalmente das camadas mais pauperizadas da sociedade. Discorda do aborto? Não aborte! Porém, não queiram ditar regras sobre o que nós devemos fazer”, falou.

'Fortalece nossa luta'

Para a professora Elisabeth Barbosa, da UFF em Rio das Ostras, "é uma vitória muito grande" o direito ao aborto ter sido inserido na Constituição da França. "Que a gente consiga beber dessa água em toda a América Latina, em todo o mundo", disse, pouco depois de participar da Plenária que fundou a Frente de Luta da Educação no Estado do Rio, movimento que já nasceu contribuindo com a convocação e organização da passeata 8M no Centro do Rio.

"Isso fortalece a nossa luta, nos dá mais força para essa luta no Brasil, tendo o aborto legalizado como um ditreito da mulher. Vamos para as ruas com algo assim: é possível", analisou a conselheira da Associação dos Docentes da UFF - seção sindical do Andes-Sindicato Nacional, ex-dirigente da entidade, mencionando ainda o direito ao aborto conquistado na vizinha Argentina, agora colocado em risco pela recem-eleita extrema direita.

'Aborto inseguro mata'

De acordo com Kênia Miranda, professora da Faculdade de Educação da UFF e diretoria da Aduff, é fundamental estar nas ruas, especialmente no 8M, para reivindicar direito para as mulheres. 

Para ela, mulheres periféricas e em situação de vulnerabilidade são as que mais sofrem sem os direitos básicos de assistência à saúde, sobretudo quando o setor é desfinanciado e precarizado, quando não encontram médicos ou vão às maternidades e não encontram leitos porque as unidades estão fechadas. “As mulheres mais pobres, as mulheres negras, as mulheres racializadas são as que mais sofrem sem esses direitos reprodutivos, sem direito ao aborto legal e seguro. E abortos inseguros levam a óbito mulheres, principalmente mulheres em situação de vulnerabilidade, periféricas, negras”, explica.

Kênia Miranda alerta ainda que as mulheres pobres muitas vezes não têm rede de apoio e não têm assistência do Estado. “Muitas vezes, perdem suas filhas e seus filhos assassinados pela violência do Estado. Não conseguem exercer o direito à própria maternidade”, lembra.

'Decidir sobre nossos corpos' 

Segundo a educadora, estar nas ruas em 8M é também uma oportunidade de combater a pauta neoliberal, o desmonte dos serviços públicos. “É garantir direitos para as mulheres e também que elas possam decidir sobre os seus corpos, que elas possam viver, não ser violentadas, assassinadas por homens, por familiares, por companheiros”, afirmou.

Kênia mencionou ainda o fato de as mulheres muitas vezes receberem menores salários para desempenhar as mesmas funções que homens e que elas seguem tendo as piores condições de vida. A maioria delas ainda é responsável pela criação dos filhos, das filhas, do cuidado com outros, com os mais velhos. 

“Então, estar na rua hoje é dizer que 8 de março é um dia histórico de luta das mulheres, daquelas que lutaram antes de nós, das que virão e das nossas filhas, para que a gente consiga efetivamente avançar nessas pautas que são tão importantes para as mulheres”, sintetizou a Kênia Miranda.

Da Redação da Aduff
Por Aline Pereira, Hélcio Lourenço Filho e Luiz Fernando Nabuco (fotos)

 

Detalhe do ato desta sexta-feira (8), no Centro do Rio Detalhe do ato desta sexta-feira (8), no Centro do Rio / Luiz Fernando Nabuco/Aduff