Mar
07
2024

Entrevista com Sandra Brignol: 'A universidade precisa respeitar e conviver com as diferenças'

Professora e pesquisadora da UFF fala sobre uma iniciativa da Saúde Coletiva que desenvolve módulos sobre a atenção à saúde da população LGBTQIAPN+, em disciplinas da graduação em medicina

Um grupo de docentes do Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal Fluminense tem trabalhado para implantar uma experiência inédita na instituição: módulos de disciplinas, para os futuros profissionais da saúde, voltados à atenção à saúde da população LGBTQIAPN+ — sigla que abrange pessoas que são Lésbicas, Gays, Bi, Trans, Queer/Questionando, Intersexo, Assexuais/Arromânticas/Agênero, Pan/Pôli, Não-binárias e mais. Uma nova turma do internato da medicina, ainda no primeiro semestre de 2024, esteve no horizonte da equipe.

Entre os docentes à frente da iniciativa está Sandra Brignol — mestre e doutora em Saúde Coletiva pelo Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal da Bahia, com pós-doutorado em saúde mental e violação dos Direitos Humanos na UFPE. A Professora e pesquisadora da UFF, Sandra estuda temas como saúde mental, saúde da população LGBTQIA+, populações vulnerabilizadas, práticas sexuais desprotegidas, HIV e Tuberculose. Coordena o projeto de extensão "Saúde das pessoas LGBTI sob a ótica da saúde coletiva: Atenção integral à saúde no Sistema único de Saúde - PROSAIN" e a pesquisa "Violação dos Direitos Humanos e saúde mental entre mulheres trans e travestis (DihMutrans)".

A docente conversou com a Imprensa da Aduff sobre a iniciativa, atendendo a um convite para abordar a importância da visibilidade trans — que tem como referência o dia 29 de janeiro, data que considera uma oportunidade para resgatar memórias de pessoas trans ou travestis que lutaram e morreram em decorrência do preconceito e da violência.

"A sociedade brasileira não aceita conviver com as diferenças", disse. Para ela, é fundamental dar visibilidade para quem luta pelos direitos das mulheres trans, travestis e os homens trans, assim como fazem instituições como a Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra) e o Fórum Nacional de Travestis e Transexuais Negras e Negro (Fonatrans).

"A Antra e o Fonatrans lembram à sociedade que ainda vivemos em um período de violência extrema contra a população LGBTQIA+ e a população trans — homens, mulheres e travestis. Estamos distantes de viver dias sem violência e violação dos direitos, neste sentido é importante relembrar como estamos longe dos ideais de sociedade justa, que ofereça oportunidades sem privilégios, não só para alguns como para todos e todas", afirmou.

Durante a conversa, Sandra adverte: "Vou deixar registrado que eu não estou falando em nome de pessoas trans, negras e travestis. Estou falando enquanto pesquisadora e acho importante [que] as pessoas trans e travestis [tenham] oportunidade de fala". 

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Sandra é consciente de seus privilégios. "Sou uma mulher cisgênera, branca e professora universitária. Estou em um lugar em que eu consigo ser solidária e entender todas as violências que as pessoas trans sofrem. Também faço parte da população LGBTQIA+ e uma pesquisadora muito sensível às questões sociais, de saúde, assistenciais, de direitos em geral" desta população, explica.

 

A experiência no Instituto de Saúde Coletiva

Sobre o trabalho que desenvolve no ISC/UFF, Sandra avalia que no Sistema Público de Saúde (SUS), em geral, há uma grave falha a ser corrigida: o desrespeito aos direitos das pessoas LGBTQIA+. “Existe uma política nacional de saúde integral da população LGBT, que foi publicada numa portaria do Ministério de Saúde em 2011, e até hoje boa parte das ações indicadas não foram implementadas por falta de vontade política. Quer dizer, você tem uma unidade de saúde composta por pessoas da nossa sociedade, logo, muitas são extremamente preconceituosas”, diz. “Quando um homem trans ou uma mulher trans chega na unidade de saúde, a primeira coisa que é desrespeitada é o seu nome e pronome. Hoje há muitas pessoas com o nome retificado [legalmente, no documento], outras não”, complementa.

Para a docente, muitos profissionais da área desconhecem as demandas de saúde da população LGBTQIA+ – tanto os graduados, que necessitam de formação continuada, quanto os que ainda estão na universidade. “No segundo semestre de 2023, a gente fez um curso que é uma formação em assistência e saúde voltado para as demandas das pessoas LGBTQIA+; uma vez por semana as aulas serviram como um laboratório para estruturar os próximos cursos. O curso deu certo e a gente quer implementá-lo, esse ano, de uma forma contínua”, revela.

No entanto, enfrentam o obstáculo da política de cortes orçamentários promovida pelos governos, que vem sendo contestada pelas entidades sindicais. “Os projetos de extensão, faz dois anos, não recebem nenhum aporte, por todo o cenário de sucateamento da saúde e da educação públicas. Então, espero que esse ano a gente tenha algum aporte para poder continuar com a iniciativa”, explica.

Falar de sexo e gênero

O curso aconteceu na Faculdade de Medicina, no HUAP-UFF, mas por iniciativa do projeto PROSAIN, do Instituto de Saúde Coletiva, e teve com o objetivo de promover a educação de profissionais da área. “E como docente, eu não posso deixar de dizer que é preciso educar desde cedo, ainda na escola, depois na universidade. Tem que falar de sexo e sexualidade, porque os profissionais de saúde hoje se formam sem falar destes temas.  E não é só na Medicina, isso é para todos da área. É fundamental abrir espaços para capacitações nas unidades de saúde, também para todos os níveis, dos maqueiros, pessoal da higienização, da enfermagem até a diretoria. Não se fala de sexo e sexualidade, de gênero, de práticas sexuais, de questões de saúde das pessoas LGBTQIA+. O corpo que apresentado no ensino e cuidado da medicina é um corpo branco – um corpo cisgênero e branco”, afirma.

Muitos estudantes, observa, sequer convivem com a diversidade. Em muitos cursos, não há pessoas trans, negras ou indígenas. “Tais “minorias” não têm representação – em relação ao corpo e à cultura – na instituição e no aprendizado. E é nesse sentido que a formação dentro da universidade precisa avançar, e não só na área de saúde”, avalia.

Sandra conta que os estudantes têm sido instigados à reflexão, sobretudo porque estão inseridos em uma sociedade majoritariamente heteronormativa. “Acho que a gente está implantando algo inédito na UFF, nas disciplinas. A gente quer escrever sobre a experiência de ter colocado esse módulo no internato, esses temas de política e demandas de saúde, saúde mental e hormonização na atenção básica de saúde (ABS). Vai demorar, mas vamos ter um efeito disso, que é chamar os futuros profissionais à responsabilidade e à empatia. Quando você está atendendo, atuando, não interessam suas crenças religiosas; você é um profissional que fez um juramento e tem uma ética a seguir”, alerta, antecipando que a meta é ter duas ou três disciplinas voltadas aos cuidados com a população LGBTQIA+ no currículo obrigatório na formação dos cursos de graduação da saúde. 

A docente também esteve à frente do SESCOTRANS, Seminário do ISC/UFF voltado à inclusão do tema da saúde das pessoas transgênero e travestis na formação médica. A demanda surgiu a partir de sugestão dos estudantes do curso de Medicina na UFF.  “Foram dois seminários em 2018 e dois seminários em 2019. Em 2021, fizemos o quinto, sempre abordando as demandas de saúde da população LGBT, com foco na população trans, e foi um grande aprendizado. Também foi a forma que os colegas, os bolsistas, os voluntários e eu conseguimos nos aproximar da população trans e colaborar de alguma forma com algumas demandas”, conta. 

Os seminários, contudo, não continuaram por falta de recursos financeiros. “A gente faz cobranças internas. Mas existem os limites; penso que temos que pressionar", diz. 

Função social do sindicato

A docente acredita na necessidade de os movimentos sociais e sindicais se aproximarem dessas lutas. Cita os coletivos como a Rede Trans da UFF, constituído por estudantes transexuais de diversos cursos da instituição, tanto em Niterói quanto fora de sede; e a OLT (Orgulho e Luta Trans) – movimento social de mulheres trans e travestis que trabalham em situação de prostituição e vulnerabilidade, em Niterói.

Explica que, pelo projeto de extensão – o Prosain, tenta dar algum suporte e assistência às meninas da OLT, cuja prioridade é sobreviver em uma sociedade hostil. “É um grupo extremamente fragilizado, com muitas carências do ponto de vista de saúde, de trabalho, de alimentação, de garantias de direitos”, diz.

Sandra vê a luta sindical com uma função social importante, para além dos muros da universidade. E se coloca à disposição para pensar, junto com o movimento, ações voltadas para pessoas LGBTQIA+ em vulnerabilidade. "É preciso considerar que o primeiro local de violência é a família e o segundo é a escola”, avalia.

Para a professora, a questão do acesso e da permanência na Universidade é um tema que também precisa estar na ordem do dia entre os sindicalistas. “Esse ano houve um avanço pequeno e vão ter bolsas de extensão direcionadas para pessoas que estão em condições de vulnerabilidade, pessoas com deficiência, pessoas negras. Acho que as pessoas trans podem estar inseridas, considerando a interseccionalidade de gênero, raça e de classe. Essas pessoas realmente têm dificuldades em continuar na Universidade, porque é preciso o dinheiro para transporte, alimentação, livro, computador e afins… é realmente muito difícil”, afirma. “Temos que avançar, porque as pessoas estão deixando a universidade por não terem como se manter”, complementa.

 

Da Redação da Aduff
Por Aline Pereira
Foto: Luiz Fernando Nabuco/Aduff

 

 

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