"A Universidade Pública precisa necessariamente ser uma Universidade antirracista", disse Jacqueline Botelho – professora da Escola de Serviço Social e dirigente da Aduff-SSind – ao mediar o debate que inaugurou a campanha "Sou Docente Antirracista" na UFF, realizado nesta segunda-feira, dia 4 de novembro.
Organizada pela Diretoria e pelo Grupo de Trabalho de Política de Classe para as Questões Etnicorraciais, de Gênero e Diversidade Sexual (GTPCEGDS) da Aduff, a atividade aconteceu no Auditório da Escola de Serviço Social (Gragoatá/Niterói), com transmissão ao vivo pela página do sindicato no Facebook e no Youtube. Contou com a participação de Sonia Lucio Rodrigues e de Sandra Vaz, docentes da ESS que foram convidadas para oportunizar as discussões.
"Como diretoria do sindicato, estamos empenhados na ampliação do debate antirracista na UFF, para que as pessoas possam construir no cotidiano da Universidade relações sociais e de trabalho que rompam com o racismo", complementou Jacqueline.
A presidente da Aduff-SSind, Maria Cecília Castro - docente do Colégio Universitário Geraldo Reis/Coluni e coordenadora do GTPCEGDS - saudou os participantes do evento. "É um desafio muito grande a gente empretecer a Universidade. Essa é uma tarefa coletiva que nos foi dada pelo Andes-Sindicato Nacional. Porém, muito antes que aconteça enquanto política sindical, ela é uma tarefa necessária porque nós entendemos que devemos construir uma universidade pública, popular, gratuita, de qualidade e preta", disse.
Para ela, é urgente a necessidade de garantir o acesso e a permanência de estudantes negros, negras e indígenas na UFF, bem como o ingresso de servidores públicos concursados - técnicos, técnicas e docentes negros, negras e indígenas na instituição.
"Quem divide a classe trabalhadora é o machismo, o racismo, a xenofobia e a lgbtfobia"
Professora da Escola de Serviço Social entre os anos de 1991 e 2016, Sonia Lucio Rodrigues manifestou a alegria em estar na unidade para um diálogo que lhe é caro. Revelou que, logo no início da sua atividade docente na UFF, sentiu o incômodo em perceber que era uma das poucas e raras professoras negras na instituição de ensino superior. À época, ao se queixar sobre o fato com companheiros de militância sindical, notou que a explicação para a desigualdade racial estava somente vinculada à luta de classe, sem que o debate fosse atrelados às opressões de gênero e de raça. Veja aqui o momento exato da exposição de Sonia Lucio.
"Aos poucos, a partir da luta do movimento feminista, do movimento negro e do movimento docente no âmbito do Andes-SN, fui compreendendo que, na verdade, aqueles companheiros estavam reproduzindo velhas teses da esquerda – que educaram a minha geração, no sentido de nos fazer acreditar que essas lutas não eram centrais e ou prioritárias. Deveríamos lutar para construir a sociedade socialista e depois trataríamos de questões 'secundárias'", disse.
Para Sonia, muitos companheiros de luta não tinham em mente a importância do binômio exploração e opressão na constituição das hierarquias social e racial. "Não é o feminismo, não são as lutas antirracistas que dividem a nossa classe e a sua luta. Quem divide a classe trabalhadora é o racismo, o machismo, a xenofobia, a lgbtfobia e outros mecanismos utilizados para estimular a divisão entre nós", considerou.
Segundo a palestrante, a Universidade fora concebida para educar os filhos da classe dominante no país e espelha, ainda na atualidade, o racismo que edificou a formação socioeconômica brasileira. A discriminação se manifesta na ausência de professores e de professoras negras ou indígenas no ensino superior, na adoção de critérios subjetivos que muitas vezes desacreditam a competência acadêmica de docentes e de estudantes não-brancos. Ela criticou a ausência de autores negros e indígenas nas referências bibliográficas de cursos de graduação e de pós-graduação e das prateleiras de bibliotecas universitárias do país.
"Por exemplo, autores como Clóvis Moura, Beatriz Nascimento e Lélia Gonzales são inviabilizados. Boicota-se a produção acadêmica de intelectuais afro-brasileiros que analisam a constituição do capitalismo no Brasil e, assim, difundem um conhecimento que não ignora que o racismo e o patriarcado são partes constitutivas da formação econômica e social brasileira, pois estes instituem os elementos estruturais que determinam as condições de vida e de trabalho da classe trabalhadora", afirmou.
Se o racismo é fruto de um processo histórico de consolidação de um capitalismo dependente e periférico, não é possível conceber uma sociedade racista sem que tenha havido resistência de amplos setores marginalizados e oprimidos, como destacou a docente. Sonia Lucio mencionou as diversas formas de resistência histórica protagonizada pelos homens negros, pelas mulheres negras, e pelos povos indígenas no Brasil, enfatizando como, ao longo dos anos, as classes dominantes buscaram diminuí-los, silenciá-los, executá-los ou embranquecê-los.
Sonia chamou atenção para a importância do Movimento Negro Unificado que, na história recente, especialmente no contexto do enfrentamento aos horrores da ditadura empresarial-militar, tornou-se protagonista das lutas antirracistas e pró-democracia. "O MNU denunciou nas ruas o preconceito racial e social, a diferença salarial, e combateu o mito da democracia racial".
Ela destacou ainda que, mesmo no âmbito do MNU, algumas mulheres precisaram erguer a voz para denunciar práticas machistas. Consequentemente, elas ampliaram o debate e enegreceram o movimento feminista ao considerarem também a questão de gênero, além da discussão racial. Assim, a luta do MNU levou à criação de algumas políticas como a instituição do racismo como crime, a política de cotas, a lei que reserva 20% de vagas para negros e negras nos concursos públicos, o estabelecimento de 20 de novembro como dia de combate ao racismo. "Levantamento do Instituto Quero Bolsas, realizado a partir de dados do IBGE, informa que o número de estudantes no ensino superior cresceu quase 400% entre 2010 e 2019. No entanto, o percentual ainda está abaixo de sua representatividade no conjunto da população, uma vez que esta alcança 56%", afirmou Sonia, apontando que a Universidade Pública Brasileira está mais negra, embora ainda permaneça racista.
As conquistas das últimas décadas não esgotam os desafios colocados para os enfrentamentos às desigualdades sociais e raciais, sobretudo porque foram obtidas no contexto do neoliberalismo – o que, para Sonia Lucio, dificulta a efetivação das políticas de reparação histórica que permanecem ameaçadas pelo avanço da extrema direita no Brasil e no mundo.
Clóvis Moura foi apagado no universo acadêmico, embora tenha sido muito importante para pensar as lutas no Brasil
Sandra Vaz exaltou a logo da campanha antirracista que também estampa uma das bandeiras da Aduff, com destaque para a imagem da Sankofa - ideograma africano representado por um pássaro com a cabeça voltada para trás e os pés apontados para a frente, simbolizando o retorno ao passado para construção do futuro.
A apresentação da professora articulou a importância do Movimento Negro nas lutas por democracia e antirracistas no Brasil, enfatizando que o mito da "democracia racial" também serviu aos objetivos da ditadura empresarial-militar no país para deslegitimar as resistências contra a segregação por cor. Veja aqui o momento exato da exposição de Sandra Vaz.
Como enfatizou, o Movimento Negro Unificado (MNU) tem perspectiva antirracista, anticapitalista e revolucionária. Na década de 1970, foi influenciado pela conjuntura interna e externa. Do ponto de vista doméstico, havia a luta contra a crise do milagre econômico brasileiro e contra a antidemocracia. No ambiente internacional, acontecimentos como o Maio de 1968 francês, as lutas anti-imperialistas e colonialistas na Ásia e na África, a Revolução Chinesa, a Revolução Cubana, o movimento pelos direitos civis nos Estados Unidos e as ascensão do trotskismo no mundo também influenciaram o comportamento do MN no Brasil.
De acordo com Sandra, em meados dos anos 1970 surgiu uma organização trotskista chamada Liga Operária (futura Convergência Socialista), contando com um núcleo negro socialista em importante diálogo acadêmico/universitário, que assinou a coluna “Afro-Latino-América” no jornal Versus – um tabloide de circulação nacional e muito conhecido durante a ditadura. "O foco era combater o mito da democracia racial, mas passando por diversas temáticas que depois se transformaram nas principais pautas do movimento negro. Além disso, eles estavam lendo Franz Fanon, Amílcar Cabral, Malcon X - grandes intelectuais revolucionários que influenciaram o grupo", disse.
Os diversos intelectuais que participaram do Jornal Versus contribuíram para fomentar debates sobre questões pertinentes à luta negra, com destaque para a atuação de Clóvis Moura - jornalista, sociólogo e historiador nordestino que se notabilizou pelas reflexões sobre o processo de resistência negra à sociedade escravista. "Clóvis Moura foi apagado no universo acadêmico. Hoje se fala um pouco mais sobre ele, que é muito importante para a formação do MNU, para a militância dos movimentos sociais nos anos 1970 e 1980, e para pensar as lutas no Brasil", disse.
Sandra também explicou que o Movimento Negro Unificado tinha um programa de ação nos sindicatos, com foco nos setores de serviços, da construção civil e do trabalho doméstico - ocupações que notadamente contavam com a maioria dos trabalhadores e das trabalhadoras negras. Além disso, o MNU também se dedicou a pensar os Direitos Humanos, como enfrentamento aos diversos tipos de violência em decorrência do racismo, estando entre elas o processo de genocídio negro.
Assim, esteve sintonizado à redemocratização do Brasil e, no avançar desta luta, que se mantém diante da atual conjuntura neoliberal. "Fernando Henrique Cardoso foi o primeiro presidente do Brasil a reconhecer o racismo e, oficialmente, vai criar mecanismos institucionais de combate ao racismo. Mas, estrategicamente vinculado a essa perspectiva neoliberal", afirmou.
Para a professora, um desafio posto diante de tal conjuntura é lutar também contra o racismo institucional, a partir da implementação de política de acesso e de permanência de estudantes negros e indígenas na Universidade, bem como romper com as violências de gênero e de raça que se fazem presentes nas relações no âmbito universitário.
Da Redação da Aduff