Abr
04
2023

35ª Medalha Chico Mendes: combate ao fascismo também passa pelo fim das chacinas cotidianas

"Continuaremos lutando contra os algozes" e inventando "outras relações e afetos", diz trecho da mensagem lida no início da cerimônia de entrega da 35ª Medalha Chico Mendes de Resistência, marcada por homenagens a lutadores que enfrentaram ditaduras

Rafael Maul e Victória Grabois leram a mensagem que abriu a cerimônia na Uerj Rafael Maul e Victória Grabois leram a mensagem que abriu a cerimônia na Uerj / Luiz Fernando Nabuco/Aduff

 

Da Redação da Aduff

Mensagem lida por representantes do Grupo Tortura Nunca Mais-RJ, no início da cerimônia de entrega da 35ª Medalha Chico Mendes de Resistência, afirmou que a luta contra o fascismo e o autoritarismo no Brasil passa necessariamente pela exigência do fim "dos mecanismos de genocídio que operam chacinas cotidianas" no país.

Esperamos que esses sejam apenas os primeiros passos, mas que eles sejam dados também com políticas efetivas que façam cessar os mecanismos de genocídio que operam chacinas cotidianas em nosso país. Sem isso não estaremos lutando de fato contra os autoritarismos, as opressões, o fascismo…

O texto também defende todos os pontos levados por familiares de vítimas da Ditadura civil-militar, no dia 28 de março, em Brasília, ao ministro dos Direitos Humanos, Sílvio Almeida.

E aponta como fundamental "a abertura imediata de todos os arquivos da ditadura", assim como a substituição dos nomes de ruas, praças, pontes, viadutos e prédios públicos que homenageiam ditadores, seus comparsas e todos os repressores e violadores de direitos da história do Brasil.

Propõe ainda que memória e a história desse período seja assegurada no currículo escolar, de forma a "contemplar as lutas contra a ditadura, a violência de Estado e defesa de uma sociedade digna".

A Aduff é parceira do Grupo Tortura Nunca Mais e participou da cerimônia de entrega da 35a Medalha Chico Mendes de Resistência, realizada na Uerj, no dia 3 de março de 2023.

A seguir, a íntegra do texto lido na abertura da cerimônia por Rafael Maul e Victória Grabois, ambos do GTNM-RJ:

"Esse ano novos e antigos desafios se apresentam para as lutas sociais e populares. A derrota eleitoral de um governo escancaradamente fascista permitiu difundir de forma mais explícita as diversas formas de genocídio que foram operadas contra negros, indígenas, mulheres, LGBTQIA+, trabalhadoras e trabalhadores, nos campos, nas cidades, periferias e nas diversas comunidades no Brasil nos últimos anos. 

O exemplo que atravessou de forma mais dolorosa em imagens, denúncias e relatos provavelmente foi o do povo Yanomami, submetido a violências abomináveis, das mais jovens crianças aos mais experientes idosos. 

Esses genocídios, entretanto, atravessam, sabemos todos, a história do Brasil e tem constantemente ganhado corpo com o desenvolvimento das mais diversas tecnologias de desaparecimento de vidas e culturas. Nos faz lembrar os versos de Milton Nascimento em homenagem ao povo Yanomami: 

“Ter de resistir à dor, à dor/ Sem compreender por que à dor, à dor/ Ter de suportar viver à dor, à dor/ E sem merecer à dor, à dor./ Se é esse o meu destino, quem é o algoz que o traçou/ Quem me contaminou/ Quem me doou a dor.”

Os algozes ao longo da história não têm se transformado muito qualitativamente. O Estado e as históricas relações de opressão e exploração que o engendram: o latifúndio, o grande capital, a branquitude racista, a heteronormatividade machista, misógina e LGBTfóbica, que atravessam nossos cotidianos, nas relações e nas instituições públicas e privadas.

Continuaremos lutando contra os algozes e denunciando onde quer que estejam. E continuaremos a insistir em inventar outras relações e afetos.

A Medalha desse ano, coincidentemente, mas não por acaso, tem uma maioria de pessoas homenageadas que estiveram lutando contra as ditaduras e foram perseguidas; algumas tombaram e vivem em nós, outras sobreviveram e estão aqui hoje, vivendo conosco. As duas exceções, também não à toa, são mulheres que colocam sua vida na luta coletiva contra as violências continuadas do Estado na história do Brasil.

As lutas de cada uma das pessoas homenageadas, seus corpos e seus coletivos carregam também as lutas de nossos antepassados desde tempos que costumam ser ditos imemoriais, porém nós rememoramos. Como diz ainda a mesma música de Milton, a nossa “história é mais que corporal/Abre o sentido para ter, a liberdade”. E por isso mantemos hoje a força e os sentidos do nosso caminhar, como sempre, com atenção.

Parte de nosso desafio será garantir a reconstituição de mecanismos retirados e que não foram benesses do Estado, mas sim conquistas. Garantir e ampliar, para quem quer que seja atingido pela violência de Estado em nossa história seja assim considerado e tenha, individual e coletivamente, seus direitos e de seus descendentes garantidos. Em qualquer momento da permanente vigência da violência de Estado em nosso país. Para isso, temos passos e um foi dado na última semana.

No último dia 28 de março, o Ministro dos Direitos Humanos, Sílvio Almeida, recebeu cerca de 80 familiares de mortos e desaparecidos políticos da ditadura civil empresarial e militar, em Brasília. Na ocasião, os familiares entregaram ao Ministro uma carta com as reivindicações, no sentido de contribuir com a elucidação do período ditatorial. O GTNM/RJ reitera as reivindicações dos familiares, que são as seguintes:

a) que a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP), instituída pela Lei 9.140, de 04 de dezembro de 1995, tenha seu ato de extinção reconhecido como nulo e seja imediatamente reimplementada;

b) sejam revistas e requalificadas as normas e critérios utilizados em todas as certidões de óbito já emitidas e naquelas que venham a ser emitidas pelo Estado brasileiro, ao reconhecer sua responsabilidade pelas mortes e desaparecimentos de militantes, com a explicitação devida da causa verdadeira do falecimento e do real local de deposição dos corpos;

c) a interpretação das normas relativas à CEMDP observe a evolução da legislação nacional e internacional com a não aplicação de prazos prescricionais ou decadenciais para os pleitos de reconhecimentos e de reparações a familiares de mortos e desaparecidos políticos;

d) sejam cumpridas todas as sentenças já prolatadas e outras que vierem a ser proferidas relativas a violações perpetradas pela ditadura civil empresarial militar;

e) sejam garantidas e planejadas as condições necessárias, financeiras e de pessoal, para que a CEMDP prossiga com as medidas de buscas e identificação de corpos de nossos entes queridos, sem a constrangedora e contraproducente presença de militares nas equipes de buscas e sem a participação de agentes da Polícia Federal nos trabalhos de identificação das ossadas;

f) dentro de suas atribuições, solicite audiências e outras medidas que considerar pertinentes para que o Supremo Tribunal Federal (STF) seja instado a reinterpretar a Lei de Anistia que até os dias de hoje garante a impunidade de centenas de torturadores e assassinos.

Consideramos ainda fundamental a abertura imediata de todos os arquivos da ditadura; a substituição dos nomes de ruas, praças, pontes, viadutos e prédios públicos que homenageiam ditadores, seus comparsas e todos os repressores e violadores de direitos da história do Brasil; e que seja trabalhado no currículo escolar a memória e a história desse período de modo a contemplar as lutas contra a ditadura, a violência de Estado e defesa de uma sociedade digna.

Esperamos que esses sejam apenas os primeiros passos, mas que eles sejam dados também com políticas efetivas que façam cessar os mecanismos de genocídio que operam chacinas cotidianas em nosso país. Sem isso não estaremos lutando de fato contra os autoritarismos, as opressões, o fascismo...

Assim, lutando e reinventando, com atenção e festejando, vamos fazendo nossas primaveras e nossos carnavais. Procurando viver os lindos versos de um de nossos homenageados de hoje, Geraldo Azevedo: 

“Quando Fevereiro chegar/ Saudade já não mata a gente/ A chama continua/ No ar/ O fogo vai deixar semente/ A gente ri a gente chora/ a gente chora/ Fazendo a noite / parecer um dia/ Faz mais/ Depois faz acordar cantando/ Pra fazer e acontecer/ Verdades e mentiras/ Faz crer/ Faz desacreditar de tudo/ E depois/ Depois amor”.

Rio de Janeiro, 3 de abril de 2023

Grupo Tortura Nunca Mais - RJ

 

Rafael Maul e Victória Grabois leram a mensagem que abriu a cerimônia na Uerj Rafael Maul e Victória Grabois leram a mensagem que abriu a cerimônia na Uerj / Luiz Fernando Nabuco/Aduff

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