Ago
11
2020

Texto de apoio: "Nossa luta para não deixar a 'boiada' do capital passar"

Veja texto de apoio utilizado para elaboração da proposta da Aduff para o funcionamento da UFF na pandemia da covis-19: "Universidade pública e pandemia: nossa luta para não deixar a 'boiada' do capital passar"

No dia 11 de março de 2020, a Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou situação de pandemia em decorrência da covid-19. Desde então, houve progressiva suspensão de diversas atividades, incluindo o ensino em todos os níveis por todo o país. No momento em que esta proposta é apresentada, estamos há mais de 100 dias em situação de isolamento social, o que significa dizer que, durante esse período, a universidade não pôde desempenhar atividades de ensino presencial.

Na primeira semana de julho de 2020, o país consolidou, triste e lamentavelmente, a posição de segundo colocado no ranking mundial em número de mortos, ultrapassando a marca de 70 mil vidas perdidas. Embora os dados sejam terríveis, observamos, em algumas cidades brasileiras, um aumento na flexibilização desse isolamento por meio de leis municipais que permitem a abertura gradual do comércio. É notório que a imensa maioria das cidades que está promovendo tal abertura, tem apresentado um incremento no número de infectados e de óbitos.

O Ministério da Saúde, depois da passagem rápida de dois ministros, atua há mais de 55 dias com a figura de um interino, que sequer tem formação na área da saúde. A população precisa de políticas públicas abrangentes e efetivas, mas o cenário é de insegurança e desinformação, fato que contribui para que não se tenha a dimensão real da mortalidade e dos riscos da doença no Brasil. Aliadas a isso, a subnotificação e a omissão de dados oficiais mostram um cenário ainda mais tenebroso. Ao presidente da república são imputáveis inúmeros crimes contra a saúde pública e, até agora, estamos sem respostas e sem perspectivas de retorno em segurança às atividades presenciais, em todas as dimensões da vida social e da educação em particular.

Neste cenário de irresponsabilidade governamental, insegurança, desinformação e mortes, as enormes desigualdades e distâncias econômicas entre as classes sociais se aprofundaram. Devido à ausência de políticas públicas, o necessário mote “fique em casa” atingiu apenas uma parcela da sociedade que pôde fazer home office e ter seu orçamento pouco

impactado. A maior parte da população foi obrigada a se expor ao vírus, uma vez que precisou sair de casa para trabalhar.

E é preciso lembrar que, em nosso país, a palavra casa não necessariamente remete a isolamento social. Segundo documento mais recente do COLEMARX (2020a), “3,2 milhões de habitações são divididas por famílias distintas que ocupam o mesmo teto; 950 mil habitações estão em estado de completa precariedade; e outras 320 mil estão em situação de extremo adensamento. Ademais, nesse espaço limitado (sobre)vivem diferentes gerações de uma mesma família. Igualmente, não podemos deixar de mencionar que 35 milhões de brasileiros sequer têm acesso a água tratada e um saneamento básico eficiente (SNIS, 2017), o que impossibilita que padrões de higiene necessários para evitar o contágio do vírus estejam assegurados”.

Diante dessas estatísticas, é fácil perceber que as dificuldades de acesso à internet também sobressaem. Ainda segundo dados colhidos do documento mais recente do COLEMARX (2020), 20% dos domicílios brasileiros não têm acesso à internet de fibra ótica, enquanto 85% das classes D/E e 61% da classe C acessam a rede exclusivamente pelo celular, utilizando pacotes de dados limitados (Comitê Gestor da Internet, 2018 apud COLEMARX, 2020b).

Note-se que o abismo tecnológico acima indicado vem sendo produzido há anos, pelo menos desde a década de 1990, quando foram providenciadas as condições para a implementação das políticas neoliberais no Brasil. Essa brutal diferença de acesso às Tecnologias da Informação e Comunicação, as chamadas “TICs”, resulta de um processo que assumiu o mesmo compasso do desmonte promovido pelo Estado brasileiro. É conhecido de todas e todos nós o significado dessas políticas neoliberais, que têm atuado, desde então, para dinamizar: a desregulamentação do trabalho; o desmonte do sistema de saúde público; a negação de direito à moradia, à educação, ao lazer, à cultura e à segurança. Ou seja, trata-se da negação à própria vida da classe trabalhadora.

Especificamente no campo educacional, fica patente o distanciamento entre aqueles que têm e os que não têm possibilidades de acesso às avançadas “TICs”. Essa diferença é mais um elemento a contribuir para que superemos a retórica, que insiste em afirmar, que vivemos sob o manto fantástico de uma suposta “sociedade do conhecimento” ou “sociedade da Informação”.

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Momentos de crise, como o que estamos vivendo, tendem a trazer à tona suas contradições, demonstrando, por exemplo, que discursos que se impõem em nome de uma suposta sociedade “pós-industrial”, uma “sociedade em rede” ou coisas do tipo, não correspondem à materialidade das relações sociais do capitalismo contemporâneo. Tais discursos e tudo que representam precisam ser criticados e superados.

Fortalecido nesse contexto da pandemia, o fenômeno da Educação a Distância (EaD) mantém fina sintonia com o já histórico processo de desigualdade que habita a escola no Brasil. Desigualdade essa que vem se aprofundando a passos largos. Nesse sentido, não pode nos causar estranheza o alto grau de desigualdade presente também nas políticas que legitimam a EaD.

O Estado é o responsável pela produção e pelo aprofundamento das desigualdades inerentes aos sistemas educacionais brasileiros, como se pode ver no que está expressamente estabelecido na Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB 9.394/96)1, em seu artigo 80 (regulamentado pelo Decreto no 9.057, de 25 de maio de 20172), ao considerar as condições necessárias para que as instituições, públicas e privadas ofertem cursos a distância “em todos os níveis e modalidades de ensino e de educação continuada”. Articulado à lógica ultraliberal, ao Estado, cabe proporcionar as possibilidades para a expansão, competitividade e lucratividade do “livre mercado” educacional.

A oferta do ensino a distância, tal como prevista no Decreto No 9.057/17, é uma “porteira aberta” aos empresários da educação para, de contrabando, passar suas mercadorias e seus “pacotes” educacionais. Diferentemente do que está previsto no artigo 2o do decreto acima, o Estado não se responsabiliza pelas condições de “acessibilidade que devem ser asseguradas nos espaços e meios utilizados”Orientada por esta lógica, a EaD se impõe como um dos novos filões do mercado educacional (público e privado), fazendo com que este momento de pandemia seja “julgado propício pelas grandes corporações mundiais – notadamente GoogleMicrosoft Facebook – para capturar o debate e, no futuro, garantir melhor aceitação de suas plataformas no campo educacional” (AVALIAÇÃO EDUCACIONAL, 2020).

Lei n. 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9394.htm>.
Decreto no 9.057, de 25 de maio de 2017. Regulamenta o art. 80 da Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2017/Decreto/D9057.htm#art24>.

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A atuação das empresas de Tecnologias da Informação e Comunicação no campo da educação não é nova no cenário econômico mundial, datando de fins da década de 1980, sobretudo na Europa (LAVAL, 2019). Essas empresas instituíram termos corporativos na educação, tais como gestor, competências, habilidades, entre outros, modificando fortemente seu caráter pedagógico e social. Segundo Laval (2019, p.143), reforçando o que já fora trazido acima, “[o] avanço do mercado de novas tecnologias educativas é acompanhado de um discurso ‘pedagógico’ que anuncia o fim dos professores”.

É neste contexto que, em resposta à pandemia, verificam-se diferenças substanciais no que tange ao ensino entre instituições públicas e privadas. Escolas e universidades particulares se adaptaram rapidamente às normatizações, aos pareceres e às resoluções do Conselho Nacional de Educação (CNE), regulamentados pelo Ministério da Educação (MEC). Aliás, importa registrar que parte expressiva das instituições privadas já convivia há muito com toda a lógica que envolve ensino a distância, ainda que, para isso, tenha sido necessário transformar seus conteúdos presenciais em virtuais.

Processo distinto vem marcando a vida da rede pública de ensino superior. A explicação para isso pode partir de, pelo menos, dois elementos que mantêm relação entre si. O primeiro, já indicado acima, traduz-se na adoção, pelo Estado, por uma política que vem marcada, sistematicamente, pelo NÃO compromisso com a educação superior, com suas instituições, bem como com o desenvolvimento da ciência e da tecnologia. Resultam deste processo, as condições para a privatização da própria estrutura e do funcionamento das instituições de ensino superior (IES), impactando o ensino, a pesquisa e a extensão. Ao negar às IES públicas as condições necessárias para o acesso às tecnologias da informação, o Estado está confirmando sua opção por atuar na linha da privatização e da terceirização de bens e de serviços. Assumir essa lógica significa operar contra a própria natureza da universidade pública e sua autonomia. Na medida em que a universidade se vê ameaçada em sua própria existência, a esta é dada como única opção buscar sua sobrevivência no mercado. Aqui se instala a EaD como política educacional.

O segundo elemento que diferencia a entrada da EaD nas IES públicas tem a ver com as lutas, que historicamente têm marcado essas instituições. A utilização da crítica – como ferramenta para o desmonte da estrutura mercantil que acompanha a EaD, bem como das

metodologias de ensino a distância que o acompanham – tem sido a postura assumida por parcela significativa da categoria docente e do Andes-SN. Fortalecer esse posicionamento é mais que necessário, sobretudo frente às políticas emergenciais em tempos de pandemia, que naturalizam a adoção das TIC, sendo estas tomadas como ferramentas fundamentais, neutras e inofensivas para subsidiar o desenvolvimento dos processos de ensino, pesquisa e extensão.

Como não poderia ser diferente, a resistência e a opção pela não adesão à EaD não domina a totalidade da comunidade acadêmica. Ou seja, já está presente nas universidades públicas a compreensão de que, junto à implementação da EaD, na mesma “porteira”, deverão passar suas metodologias. Neste ponto, faz-se necessário destacar que tais metodologias mantêm íntima relação com as chamadas “pedagogias flexíveis”. Não podemos perder de vista que a “aprendizagem flexível é uma nova forma de mercadoria que, para ser produzida e consumida, demanda a formação de subjetividades flexíveis: pragmatistas, presentistas e fragmentadas” (KUENZER, 2017). Todas essas metodologias ligadas à lógica da EaD estão no campo do pragmatismo próprio do mercado. Trata-se de metodologias que operam na fragmentação entre teoria e prática e que têm forte adaptação às relações de produção contemporâneas, subsidiados pelo padrão de “acumulação flexível” (HARVEY, 2012).

Sob esta perspectiva, a produção do conhecimento fundamentado na ciência, na filosofia, nas artes, sustentado por suas raízes e contradições históricas, perde a centralidade, passando de “atividade-fim” a “atividade-meio”. Ou seja, aqueles que defendem as “TICs” e sua presença na modalidade EaD buscam adesão, entre outros aspectos, no fortalecimento das seguintes retóricas: 1) a concepção de que “aprendizagem flexível” e suas metodologias garantem o ‘protagonismo’ e a ‘autonomia’ do estudante; 2) a ideia de que o professor ensina da mesma forma como foi ensinado, portanto, deverá ser descartado de suas funções, caso não se adapte aos novos tempos.

Todo esse discurso busca um lugar hegemônico ao utilizar argumentos superficiais na tentativa de justificar a adesão à “aprendizagem flexível” como antídoto ao ensino conteudista e à centralidade do professor. Sob esta perspectiva, a centralidade deverá estar totalmente voltada às condições de aprendizagem. Ao professor, restaria o papel de “tutor”, de “facilitador de informações”, na medida em que caberá ensinar aos estudantes o caminho para “aprender a aprender” sozinhos. Esse é o discurso da liberdade e da autonomia que tanto tem encantado as

reformas educacionais, desde a educação básica ao ensino superior. Tal discurso precisa ser desvelado e combatido antes que a adaptação à flexibilização da vida e à volatilidade e à fragmentação impostas pelo mercado sejam soberanas entre nós, o que se materializa tanto na precarização da existência da classe trabalhadora quanto na destruição da função social da universidade pública.

Não é coincidência que isso se assemelhe à concepção de ensino que fundamenta as propostas oriundas da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) e do Banco Mundial (BM). O Ministério da Educação também se alinha a esta perspectiva e deixa claro, em suas ações, que considera a pandemia uma “janela de oportunidades” para “passar a boiada” do desmonte da rede de ensino federal, em todos os seus níveis, e das IFES em particular. Um quadro que se completa com a postura das agências de pesquisa em cortar bolsas e auxílios e direcionar o pouco que restar a linhas de financiamento para áreas muito específicas de pesquisa, definidas sem qualquer consulta à comunidade acadêmica.

Também não são coincidências as recentes mudanças na Base Nacional Comum Curricular (BNCC) e as semelhanças com o Projeto Future-se (PL 3076/2020), encaminhado à Câmara dos Deputados em plena pandemia, cujo objetivo é transformar o ensino público em uma empresa que captaria recursos no mercado, sendo mais uma forma de atender aos interesses das grandes empresas em detrimento da pesquisa autônoma. Esses setores agem para incutir na população e nas comunidades escolares e acadêmicas um supostamente inevitável “novo normal”, em que a transposição das disciplinas presenciais para o ensino remoto é a única e exclusiva solução para a excepcionalidade que vivemos. Cabe à transposição das disciplinas presenciais para o ensino remoto as mesmas críticas até agora apresentadas para a EaD.

O ensino remoto que está sendo realizado na Universidade Federal Fluminense, o qual foi aprovado pelo Conselho de Ensino, Pesquisa e Extensão (CEPEx) da universidade, sem qualquer deliberação do Conselho Universitário (CUV), representa, sob nossa avaliação, a adequação total às mudanças que se tenta impor há anos para a educação. Sob a aparência de emergencial, traz, em seu bojo, fortes elementos para o avanço e a permanência da educação mediada pelas “TICs”, independentemente de ser chamado ensino remoto, EaD, educação on-line ou qualquer outro termo.

Não se trata de nenhum tipo de “tecnofobia”. As universidades, ao longo de séculos, desenvolveram e incorporaram tecnologias ao processo de ensino e aprendizagem, sendo a docência universitária, por definição, aberta a todo tipo de ferramenta tecnológica que possa auxiliar suas atividades. O que está em discussão neste momento é outra coisa. As experiências de EaD, segundo a lógica empresarial, que hoje domina o panorama educacional superior privado, se introduzem velozmente no público, e trazem, como elemento indissociável à sua lógica pautada pelos lucros, aligeiramento da formação, com pouca ou nenhuma dimensão crítica, perda da autonomia universitária, precarização das relações de trabalho e da dimensão inclusiva, presente no ensino público, gratuito e presencial

Por fim, vale destacar que os programas, materiais e pacotes informacionais destinados à modalidade EAD são propriedade de conglomerados educacionais, que embora representem uma diminuta expressão quantitativa, detêm elevados números de unidades educacionais no país e no mundo. Ressaltamos, ainda, que os perigos advindos da incorporação do setor educacional à dinâmica do mercado nos alertam para a crescente vigilância e policiamento do trabalho docente, como também, a possibilidade de uso de dados, trechos de aulas e informações com objetivos comerciais e políticos. Assim, devemos nos afirmar em luta contra essa precária condição de trabalho que busca homogeneizar a produção do conhecimento nas universidades e colégios (municipais, estaduais e federais), colocando em xeque a função social da educação pública e a liberdade de cátedra dos docentes.

Por todos os argumentos apresentados, entendemos que a universidade pública não deve transpor suas disciplinas para o ensino remoto. A continuidade do ensino deve se dar de outra forma. Ela não pode impulsionar o avanço da EaD no interior das universidades; não pode comprometer a formação de conteúdos fundamentais para a atuação profissional e na sociedade das/dos futuros egressos/as; não pode ignorar as desigualdades socioeconômicas, de acesso e de acessibilidade; não pode precarizar as condições de trabalho; não pode se utilizar de programas, plataformas e ambientes virtuais regidos pela lógica do lucro. E foi considerando isso que a ADUFF elaborou suas propostas.

Bibliografia:

COLETIVO DE ESTUDOS EM MARXISMO E EDUCAÇÃO - COLEMARX. Em defesa da educação pública comprometida com a igualdade social: porque os trabalhadores não devem aceitar aulas remotas. Rio de Janeiro: PPGE- UFRJ, 2020a. Disponível em: < http://www.colemarx.com.br/wp-content/uploads/2020/04/Colemarx-texto-cr%C3%ADtico- EaD-2.pdf>. Acesso em: 25 mai. 2020.

_________________________________________________________________. Universidades Públicas e aulas remotas: nenhum estudante pode ser excluído. Rio de Janeiro: PPGE-UFRJ, 2020b. Disponível em: http://www.colemarx.com.br/wp-content/uploads/2020/07/COLEMARX- Universidades-p%C3%BAblicas-e-aulas-remotas-nenhum-estudante-pode-ser- exclu%C3%ADdo-1.pdf. Acesso em: 5 jul. 2020.

FREITAS, Luiz Carlos de. Um possível novo ministro da Educação (atualizado). Disponível em: <https://avaliacaoeducacional.com/2020/06/22/um-possivel-novo-ministro-da-educacao- atualizado/>. Acesso em: 22 jun. 2020.

GOMES, Gustavo et al. A universidade e a pandemia: Uma reflexão sobre as atividades acadêmicas através de tecnologias remotas na UFF. Disponível em: < https://esquerdaonline.com.br/2020/06/17/a-universidade-e-a-pandemia-uma-reflexao-sobre-as- atividades-academicas-atraves-de-tecnologias-remotas-na-uff/>. Acesso em: 20 jun. 2020.

HARVEY, David. Condição pós-moderna. São Paulo: Loyola, 2012.

KUENZER, Acacia Zeneida. Trabalho e escola: a flexibilização do ensino médio no contexto do regime de acumulação flexívelEduc. Soc. [online]. 2017, vol.38, n.139, pp.331-354. Acesso em: 10 jun. 2020.

LAVAL, Christian. A Escola não é uma empresa: o neoliberalismo em ataque ao ensino público. São Paulo: Boitempo, 2019.

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