Jul
08
2020

Pesquisadores veem grave risco em universidades adotarem plataformas digitais de grandes corporações

Professores alertam para falsos custos menores, controle da informação e defendem iniciativas conjuntas e públicas de TI; na pandemia, UFF disponibiliza plataforma do Google e Moodle

DA REDAÇÃO DA ADUFF

Não é de hoje que as plataformas digitais comercializadas pelas grandes corporações empresariais do ramo estão de olho e investem no mercado educacional. A pandemia do coronavírus, no entanto, abriu uma oportunidade inédita para esse setor. O problema é que a adesão a essas plataformas é um passo que poderá ter consequências profundas e perigosas para a educação pública no Brasil. 

É o que alertam professores e pesquisadores que estudam o assunto. "Esses grandes grupos empresariais reformadores da educação encontram na pandemia um terreno fértil para a sua expansão", constatou o professor Nelson Pretto, durante um debate promovido pelo Sindicato Nacional dos Docentes (Andes-SN), com transmissão ao vivo na internet. Pretto é professor da Faculdade de Educação da Universidade Federal da Bahia e coordenador do grupo de pesquisa Educação, Comunicação e Tecnologias. "Não tenho dúvida que [esses grupos querem] aproveitar a pandemia para passar a boiada, porque já está passando", alertou, durante a live, numa referência ao que disse o ministro Ricardo Salles, do Meio Ambiente, na reunião ministerial de 22 de abril, quando defendeu aproveitar a crise sanitária para aplicar as propostas do governo.

A professora Inny Accioly, do Instituto de Educação da UFF em Angra dos Reis, disse que para propulsionar o ensino remoto os organismos internacionais estabeleceram uma coalizão global da educação. Ela envolve a Unesco, o Banco Mundial, a OCDE, a ONU, a OMS, a Unicef, a OIT e grupos empresariais gigantes, como a Microsoft, a Google e o Facebook. "O objetivo dessa coalizão é bem claro: propulsionar a utilização de tecnologia e aprendizagem remota, aproveitando a oportunidade da pandemia. Como é que eles fazem isso? Oferecendo os serviços supostamente gratuitos durante um período de tempo. Mas é uma falsa gratuidade. Porque a gente paga essas plataformas, esses serviços, como por exemplo a Google, dando para elas o total controle da informação acadêmica, dos dados dos professores, dos estudantes, dos dados sobre como ocorre a aprendizagem, quais as dificuldades dos estudantes, em quais conteúdos os estudantes têm dificuldades, quais as abordagens pedagógicas que os professores utilizam. Isso tudo para uma corporação privada e estrangeira que trabalha reconhecidamente com a capacitação de dados para fins mercantis e também para controle. Então, temos aí um frontal ataque à autonomia científica do país e à soberania educacional", disse.

A docente da UFF assinalou que com o fechamento das instituições de ensino, em decorrência da pandemia do coronavírus, o Banco Mundial passou a sublinhar nos seus relatórios a ideia de que a aprendizagem não pode parar e que para isso os sistemas educacionais devem dar um jeito - terreno fértil, portanto, para essas plataformas digitais avançarem. "Para que a aprendizagem não parasse seria necessário adotar formas alternativas de entrega de conteúdo e o termo usado é esse mesmo: entrega de conteúdo, de conteúdos curriculares", disse Inny.

Plataformas na UFF

O Proiac (Programa de Inovação e Assessoria Curricular) e a Pró-Reitoria de Graduação da UFF lançaram, em junho, o documento "Boas práticas para o ensino on line", uma cartilha elaborada a partir das oficinas Durante as Oficinas “Potencializando o Aprendizado Usando o Classroom”, embora a apresentação do material observe que ela pode ser útil para qualquer plataforma que venha a ser utilizada "durante a pandemia e depois dela". A UFF disponibiliza, oficialmente, duas plataformas: "o Moodle, gerido pelo Cead/UFF, e o Google Classroom, disponível nas contas @id.uff.br.". O documento menciona ambas, mas, até porque foi elaborado em cima das oficinas da Classroom, nitidamente incentiva o uso da segunda. 

"A UFF recomenda a utilização do Classroom ou do Moodle. Mas embora tenha já diferentes pesquisadores da área falado da questão da privacidade, do sigilo, da vigilância, da captura de dados, a discussão sobre plataforma segue não sendo central na UFF", observou a professora Marina Tedesco, presidente da Aduff-SSind.

Oportunidade e riscos

Para Márcio Moretto, doutor em Ciência da Computação pela Universidade de São Paulo, onde é professor da Escola de Artes, Ciências e Humanidades, ao optarem pela compra das plataformas das grandes corporações, que "num primeiro momento podem sair mais baratas", as universidades públicas perdem a oportunidade de desenvolver suas próprias tecnologias e criar autonomia - inclusive na formação de um corpo técnico capaz de administrá-las. "Isso garantiria uma forma de autonomia perante essas grandes corporações", disse, também durante a live do Andes-Sindicato Nacional dos Docentes.

O docente ressaltou que a adesão às grandes corporações coloca em risco o controle sobre o que a universidade produz. "Uma vez que a gente incorpora nossos dados na nuvem, a gente está abrindo mão da soberania dos dados. As nossas informações necessariamente estão passando pelos servidores das grandes corporações e estão sujeitas, dentre outras coisas, à legislação desses países. Se, por exemplo, como já aconteceu num passado recente, os Estados Unidos criam uma legislação que diz que eles podem ter acesso às comunicações que passam por essas grandes corporações sob a desculpa do combate ao terrorismo, eles têm acesso a toda a comunicação, toda produção acadêmica e científica que a gente está desenvolvendo aqui no Brasil com nossos recursos públicos", disse.

Defesa do trabalho articulado e dos TI

O professor Nelson Pretto lamentou que universidades públicas e secretarias de educação tenham adotado "a solução Google ou Microsoft" em detrimento da valorização dos setores de TI (Tecnologia da Informação). "As nossas universidades em vez de trabalharem numa perspectiva federada, compartilhando recursos, buscando soluções livres que poderão estar o tempo inteiro à disposição de todos alunos, de todos os servidores, de todos os professores para o trabalho de educação, tanto presencial, quanto semi-presencial, como a distância, começam a se desresponsabilizar do setor de TI, por conta dos cortes de recursos que temos sofrido, e passam a  terceirizar essa solução. É um verdadeiro absurdo, é lamentável", criticou.

O docente pontuou casos conhecidos sobre o que pode acontecer quando essas corporações se apropriam de dados 'sugados' por elas. Mencionou, entre outros, o que ocorreu nas eleições nos Estados Unidos, onde foram utilizados na campanha que levou Donald Trump à vitória. "Precisamos que as nossas universidades públicas não naturalizem o uso dessas plataformas como se fossem mágicas e gratuitas. Elas não são mágicas nem gratuitas, elas têm donos e essa nuvem é uma metáfora muito leve. Na verdade, são servidores pesados que estão localizados em lugares que nem sabemos onde e sob legislaçòes diferentes", disse.

Nelson Pretto propôs que o sistema público de educação, tanto em nível superior quanto básico, se articule para instalação de redes tecnológicas que extrapolem o uso intensivo das soluções apresentadas pelo que denomina 'big five' - grupo composto pelo Google, Amazon, Facebook, Apple e Microsoft. Afirmou não ter dúvidas de que é possível construir alternativas livres que fujam desses grupos. "E que possibilitariam deixar essas soluções privadas, que ficam com nossos dados, monetizam os nossos dados e que fazem a ilusão de que tudo está sendo gratuito. Óbvio que essas soluções desses cinco homens brancos mais ricos do mundo dessas plataformas são sempre mais atraentes e mais performáticas. [Porém], mais do que muito dinheiro envolvido, há muito interesse em definições políticas com esses dados", avaliou. 

O professor sustentou haver algo preferível a gastar tempo e esforços discutindo semestre remoto ou aquele conteúdo específico, ancorados muitas vezes em plataformas privadas. Disse que se poderia estar construindo uma grande rede de acolhimento, na perspectiva da cultura digital, com base no desenvolvimento das plataformas e experiências que já existem nas universidades. "Esse é o momento de darmos acolhimento aos nossos [alunos, professores, técnicos] e, ao mesmo tempo, fazermos uma ampla experimentação de soluções livres que possam articular as universidades", defendeu.

Live do Andes-SN debate as plataformas digitais - clicar aqui para assistir

DA REDAÇÃO DA ADUFF
Por Hélcio Duarte Filho

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