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Mai
19
2020

“Não podemos pensar a EAD distante dos movimentos da mercantilização ou daquilo que alguns autores têm chamado de comodificação da educação”

A reflexão é da professora da Escola de Serviço Social da UFF, Andrea Vale, que entre o período de 2012 e 2015 integrou um estudo sobre o Cederj

Professora da Escola de Serviço Social da UFF, Andréa Vale faz parte desde 2007 da Rede Universitas BR, que pesquisa a expansão do ensino superior após o período de reforma do Estado e pós-LDB 9.394/96. No estudo, a docente mapeou as estratégias de apresentação do Ensino a Distância (EaD) como modalidade, em um processo que atravessa a educação pública e privada. Durante o período de 2012 e 2015, a professora também participou de um estudo de caso sobre o Cederj, consórcio da Fundação Centro de Ciências e Educação Superior a Distância do Estado do Rio de Janeiro. 

Para Andrea, mesmo a experiência de EaD pública do Cederj, que se apresenta como sendo extremamente exigente e de qualidade, até ela está embasada em uma concepção frágil da educação, com a fragmentação da educação superior e do trabalho docente. “Embora esteja presente no interior do estado do Rio, a terminalidade dos cursos no Cederj é baixíssima. A média entre 2001 e 2009 era de uma terminalidade de apenas 14,63%. Isso me impressionou muito, junto com as condições de trabalho dos profissionais da educação. Desde que a seleção pública foi instituída lá, a cada cinco anos os tutores têm que fazer nova seleção, com bolsas que são baixíssimas e sem qualquer direito trabalhistas”, relata a docente.

Em entrevistas realizadas com os tutores presenciais do Cederj, durante a pesquisa de campo, a professora conta que testemunhou a angustia dos profissionais da educação com a situação e com o papel que cumprem. Diante da necessidade e do pedido dos estudantes, muitos preparam aulas mesmo sendo proibidos de fazê-lo pela Fundação, já que os tutores não são considerados professores - são mediadores de conteúdo elaborado pelos conteudistas. Além do retrabalho frequente e sem remuneração adicional, Andrea destaca ainda que não há promoção ou progressão no Cederj, já que não existe carreira docente.

“Todos com quem conversei também fizeram menção à dificuldade que é realizar formação a distância, da importância de ser criativo para superar a distância e de como os poucos momentos presenciais são muito valorizados. Ora, se a qualidade principal da EaD é justamente a distância e os trabalhadores falam em superar a distância, então o modelo de educação a distância não serve”, pontua.

A docente considera preocupante que o ensino a distância seja considerado solução para a educação em tempos de pandemia e critica a possibilidade de utilização extensiva de disciplinas semipresenciais do Consórcio Cederj nos cursos de graduação presencial da UFF, o que já é permitido na universidade desde 2015, através da Resolução N.º 103/2015.

“Honestamente não sei nem se as plataformas do Cederj aguentam o aumento exponencial do tráfego, ou como enfiar tantos estudantes de cursos presenciais da UFF numa estrutura de trabalho que já é sobrecarregada. Fato é que o problema da pandemia está posto, e é um problema extra educacional, social, político, de saúde pública. É claro que a suspensão do calendário significa algo na vida dos estudantes. Mas não podemos usar isso como trampolim para falar que a solução é o ensino a distância, quando não é. As pessoas estão cuidando de sua saúde, estão angustiadas, num governo que desrespeita todas as recomendações mundiais no âmbito da saúde pública. Muitos estudantes estão em casa, mas muitos também continuam trabalhando nas ruas. E não são poucos os que atuam no front do combate ao coronavírus, como trabalhadores da saúde e da assistência social, por exemplo. O que a gente tem que assumir e defender é o direito deles por uma formação de qualidade. Queremos formar nossos alunos, e não apenas certificá-los. E esperar que eles fiquem vivos, que as pessoas fiquem vivas”, desabafa a docente.

Para Andrea, é necessário afirmar que o projeto de certificação em massa é diferente de democratizar a produção de conhecimento e faz parte da estratégia de expansão e da mudança de natureza da educação superior, que inclui o ‘modelo’ de EaD. “ A EaD é a única forma de ensino nomeada a partir do modo como ela se realiza. Está embutido aí uma oposição e uma desqualificação do presencial e uma valorização das tecnologias. Em uma sociedade em que a informação tem tido papel destacado, a ideia que o capital quer reverberar é do sistema tecnológico como sujeito do processo educativo, o que seria por si só mais democrático e, portanto, inexorável”, explica.

Ela adverte, contudo, que por trás desse neo tecnicismo está a ideia fundamental no capitalismo contemporâneo da substituição do trabalho vivo pelo trabalho morto. “Quando adquirir conhecimento vira sinônimo de acessar informação, o professor se torna supérfluo e a aprendizagem vira um produto que você pode acessar em pacotes que vêm prontos, como nas apostilas do Cederj. Isso só é possível quando a gente transforma a concepção da educação. Não podemos pensar a EaD distante dos movimentos da mercantilização ou daquilo que alguns autores têm chamado de comodificação da educação, numa relação fetichizada com a tecnologia no capitalismo contemporâneo”, alerta a docente.

Andrea defende uma concepção de aprendizagem mediada pelo ensino, segundo ela indissociáveis. “Não é o aluno ou o professor o centro, é a relação de todos com todos, não só a relação do aluno com o professor, mas também a relação dos estudantes entre si. A aprendizagem é coletiva e a interação é mais que informativa, ela é formativa, ela é afetiva. Aprendizagem é um processo de transformação e de produção de conhecimento. Tanto é assim que o que garante a qualidade das instituições de ensino é o fato de os professores, em sua maioria, possuírem um regime de trabalho que permita a realização do tripé ensino, pesquisa e extensão, que permita a presença”, friza.

A docente faz questão de ressaltar que a Universidade não está parada durante a pandemia. “Ouso dizer que estamos funcionando para além do possível. Faço parte do Comitê de Ética e Pesquisa da UFF, e lá a tramitação está acelerada, tem reunião toda semana para facilitar as pesquisas que chegam e estão na linha de frente do combate ao coronavírus”, finaliza.

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