Mai
02
2019

Só quem quer ‘adestrar’ estudante teme Ciências Humanas, afirmam docentes

Docentes defendem Filosofia e Sociologia e afirmam que ministro e presidente não sabem o que é uma universidade

 

“As ciências humanas e sociais têm um alcance amplo e importante para o futuro do país, muito além de um retorno imediato: ensinam a pensar, condição necessária para a construção de uma sociedade ilustrada, democrática e produtiva", diz um trecho da carta assinada por Luiz Davidovich - presidente da Academia Brasileira de Ciências. O documento foi encaminhado no dia 30 de abril para o presidente Jair Bolsonaro e para Abraham Weintraub, ministro da Educação, em reação ao anúncio de que o governo descentralizará investimentos” em cursos da área de humanidades, nomeadamente os de Filosofia e de Sociologia.

Em meio à crise vivenciada pelo Ministério da Educação e às demandas por maiores investimentos em pesquisa, ensino e extensão no Brasil, diversas entidades que representam cursos de graduação e de pós-graduação na área de Humanidades reagiram com veemência à decisão governista.

“O ministro e o presidente ignoram a natureza dos conhecimentos da área de humanidades e exibem uma visão tacanha de formação ao supor que enfermeiros, médicos veterinários, engenheiros e médicos não tenham de aprender sobre seu próprio contexto social nem sobre ética, por exemplo, para tomar decisões adequadas e moralmente justificadas em seu campo de atuação”, afirma a nota de repúdio da Associação Nacional de Pós-graduação em Filosofia (Anpof), abaixo-assinada por mais de 50 instituições, inclusive internacionais, de diversos campos de saberes.

“Os desafios matemáticos me levaram à Filosofia. Pensamento de quem não quer encontrar apenas o resultado, mas de quem deseja pensar sobre os caminhos para solucionar o problema; pensar sobre os objetos da Matemática e onde eles estão; refletir sobre as aplicações da matemática na sociedade científica-tecnológica em que vivemos e a quem ela está “servindo” - são algumas das atribuições que tenho que diferem o meu trabalho do algoritmo “irracional” de um computador ou de uma calculadora”, explica Sicleidi Valente, professora de Matemática do ensino fundamental e médio.

Para a docente, o governo Bolsonaro quer transformar o Brasil numa sociedade que calcula, mas que não raciocina. Ela conta que a docência e as questões postas pela Matemática a levaram, agora, a se lançar numa graduação em Filosofia. “Estudei Matemática na Uerj e hoje, provocada por questões postas em sala de aula, resolvi estudar Filosofia na UFRJ”.

“Novos horizontes além do Twitter”

“No conjunto dos inúmeros desmontes e atrocidades do atual presidente, anunciados e virilizados todos os dias pelo Twitter – local de “gestão” do seu governo –, o que pretende Bolsonaro? Negar a importância e o valor das Ciências Humanas para a vida social? Negar a importância da criação como forma de experimentar outros modos de existir? Deixar um vazio no que se refere à preocupação com a formação integral dos seres humanos? Limitar o conhecimento à sua utilidade para o capitalismo?”, indagou criticamente a professora Joana D`Arc Fernandes Ferraz, do Departamento de Sociologia e Metodologia das Ciências Sociais da UFF e membro da Diretoria Colegiada do Grupo Tortura Nunca Mais-RJ.

Segundo Joana, a Educação não deve limitar-se ao mercado e a sociedade não deve ser reduzida a “contribuinte”. “Queremos uma Educação que crie canais entre a vida e o conhecimento, que conduza todos nós às nossas potencialidades e que valorize cada existência. Experiência única que nunca será reduzida aos interesses dos poderosos. Queremos que nossos estudantes construam seu modo de conhecer, porque só assim serão capazes de construir outros horizontes não delimitados pelas instituições”, avalia a docente.

A docente afirma que o pensamento livre e criativo é capaz de construir outros modos de vida social. “As Ciências Humanas provocam medo naqueles que querem conduzir nossos estudantes ao adestramento, à obediência e à mediocridade”, problematiza. “Novos horizontes jamais serão produzidos pelo twitter”, critica Joana Ferraz.

Inconstitucionalidade

Também professor da UFF, André Constantino Yazbek, chefe de Departamento da Filosofia, concorda com a colega Joana, da Sociologia. “As recentes declarações do atual Ministro da Educação, Abraham Weintraub, com intervalos de poucos dias e devidamente acompanhadas da aquiescência do senhor presidente da República, Jair Bolsonaro, demonstram, em primeiro lugar, um desconhecimento inaceitável, dado o cargo que ocupa, acerca da natureza mesma dos saberes produzidos na área de humanidades, do custo e do perfil atual dos estudantes em nossas universidades: com custos bastantes modestos em relação a outras áreas do saber, as humanidades detém, em seus cursos, discentes em sua maioria egressos das camadas de mais baixa renda da população”, avaliou o docente.

André também alerta para a inconstitucionalidade da afirmação do presidente e do ministro. “Algumas das declarações do senhor Weintraub ainda flertam com a possibilidade de violação ao artigo 207 da Constituição Federal, que garante a autonomia universitária, além de ofenderem a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB)”, adverte o professor.

Anti-intelectualíssimo

Os acadêmicos, em linhas gerais, têm se manifestado criticamente ao governo Bolsonaro e as investidas sucessivas feitas por ele e seu ministério contra a Educação. Os professores chamam atenção para o crescimento de uma perspectiva anti-intelectual, que refuta toda forma de conhecimento crítico. Em meio a esse discurso, a universidade pública federal tem sido penalizada pelo atual governo, com significativos cortes e uma política que aprofunda um cenário de sucateamento e desmonte.    

“Do ponto de vista político e das práticas autoritárias que parecem dar o tom deste governo, o senhor ministro da Educação, perfeitamente afinado ao núcleo ideológico do bolsonarismo, promove uma espécie de discurso paranoico contra a filosofia e a sociologia, transformando-as em 'inimigos internos' e difamando nominalmente universidades que gozam de prestígio nacional e internacional e que figuram entre as instituições de melhor desempenho do país, como é o caso da UFF”, analisa André Yazbek.

O docente se refere as recentes declarações do dirigente do MEC de que a Universidade Federal Fluminense, Universidade de Brasília e Universidade Federal da Bahia seriam as três instituições públicas de ensino superior estrategicamente penalizadas com o corte de 30% no orçamento. Em entrevista ao "Estado de S. Paulo", o ministro Abraham Weintraub disse que as "universidades que, em vez de procurar melhorar o desempenho acadêmico, estiverem fazendo balbúrdia, terão verbas reduzidas".

“O golpe desferido contra o conjunto de nossas universidades federais pelo senhor Weintraub, e em especial contra os saberes da filosofia e da sociologia, é a expressão clara, irretocável, de um anti-intelectualismo autoritário e de uma concepção tacanha do ensino, marcas de uma administração pública atravessada pelo obscurantismo e pelo desprezo às liberdades de expressão, de crítica e de pensamento, fundamentais não apenas para o ambiente universitário, mas também para a democracia como um todo. Resta saber quais os limites da sanha governista em sua cruzada contra a universidade pública, a nos transformar em espantalhos convenientes às suas concepções obscurantistas de política e sociedade”, concluiu o docente.

Da Redação da ADUFF | Por Aline Pereira
Foto: Reprodução da Internet