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Nov
20
2017

‘Escritor do povo’, Lima Barreto ganha destaque literário e social

Obra de Lima Barreto ganha repercussão provavelmente inédita e suscita inevitável associação com o cenário político e social de retrocessos sociais e ameaças conservadoras

Não tem cara de coincidência. No ano em que se comemora os cem anos da Revolução Russa e da primeira greve geral no Brasil, Lima Barreto, o ‘escritor do povo’, ganha destaque em debates literários e acadêmicos, feiras, publicações de livros e é tema de filme ainda em produção.

É provável que contribua para renovar o interesse pelo escritor e a obra do autor de “O Triste Fim de Policarpo Quaresma” o cenário político do país – onde reivindicações pelas quais se lutava em 1917, como a jornada de 8 horas diárias de trabalho, correm o risco de cair com as reformas em curso. “A obra de Lima Barreto sem dúvida dialoga muito com o momento atual”, observa o professor Edson Teixeira, que participa de Grupo de Estudo na UFF, em Rio das Ostras, no qual textos do autor são analisados.

Para ele, o interesse pelo escritor – morto precocemente, em novembro de 1922, aos 41 anos, por problemas de saúde – pode estar associado à origem de Lima e às ideias que defendia, que contestavam as elites da época e se alinhavam aos direitos sociais. “Alguns temas que ele aborda são muito presentes no cotidiano cem anos depois: esse caráter libertário que ele tinha, a forma como foi desprezado, o seu estilo satírico, a questão racial”, observa o docente, que integra a direção da Aduff.

Manifesto

Nem a greve geral de julho 1917, nem a Revolução Russa, em outubro do mesmo ano, passaram despercebidas nos textos que Lima Barreto produziu na época, afirmou, em recente seminário, a professora de Literatura Magda Furtado, do Colégio Pedro II. Ela ressalta que o escritor produzia muito e intensamente, com frequência publicando por meio de pseudônimos. Negro e de origem pobre, Lima Barreto não hesitou em defender a Revolução Russa, 
enquanto os principais jornais no Brasil criticavam os bolcheviques. “Ele era debochado, provocador, usava uma linguagem muito próxima à falada e foi o primeiro a tocar em certas questões naquele efervescente começo de século no Brasil”, disse a professora do Pedro II ao mencionar o polêmico “No Ajuste de Contas”, texto publicado em 11 de maio de 1918, no periódico carioca ABC.

O artigo, conhecido como “Manifesto Maximalista”, faz, ao final, referência direta à Revolução Russa, cuja influência é evidente em todo o texto, que aborda os limites da propriedade privada e conclama a revolução social: “Os fundamentos da propriedade têm sido revistos modernamente por toda a espécie de pensadores e nenhum lhe dá esse caráter no indivíduo que a detém. Nenhum deles admite que ela assim seja nas mãos do indivíduo, a ponto de lesar a comunhão social, permitindo até que meia dúzia de sujeitos espertos e sem escrúpulos, em geral fervorosos católicos, monopolizem as terras de uma província inteira, títulos de dívida de um país, enquanto o Estado esmaga os que nada têm com os mais atrozes impostos”.

Qualidade literária

Para além das inevitáveis referências políticas a um autor negro que, no início do século XX, ousava criticar a sociedade, a atual busca a Lima Barreto também ressalta a nem sempre reconhecida qualidade literária do autor. “Uma das críticas que ainda fazem a ele é que era um escritor descuidado com os seus textos, mas ele trabalhava, sim, muito os seus textos e tinha profunda consciência do que queria com eles”, afirmou, durante debate na UFF, a professora Ceila Maria Ferreira, que organizou com a professora Carmen Lúcia Negreiros de Figueiredo o recém-lançado “Caminhos de Criação: Recordações do Escrivão Isaías Caminha”, edição crítica do romance de Lima.

A docente, que participa da diretoria da Seção Sindical, observa que esse trabalho de cotejo de diferentes edições da obra fornece elementos capazes de “jogar por terra” esse rótulo de escritor descuidado. “Visão que me parece muito mais por razões ideológicas, contra alguém que não faz parte das oligarquias, do que por qualidade literária”, afirmou.

DA REDAÇÃO DA ADUFF | Por Hélcio Lourenço Filho
Foto: Reprodução de Internet

Trecho 

"Estou no Hospício ou, melhor, em várias dependências dele, desde o dia 25 do mês passado. Estive no pavilhão de observações, que é a pior etapa de quem, como eu, entra para aqui pelas mãos da polícia. Tiram-nos a roupa que trazemos e dão-nos uma outra, só capaz de cobrir a nudez, e nem chinelos ou tamancos nos dão. Da outra vez que lá estive me deram essa peça do vestuário que me é hoje indispensável. Desta vez, não. O enfermeiro antigo era humano e bom; o atual é um português (o outro o era) arrogante, com uma fisionomia bragantina e presumida. Deram-me uma caneca de mate e, logo em seguida, ainda dia claro, atiraram-me sobre um colchão de capim com uma manta pobre, muito conhecida de toda a nossa pobreza e miséria. Não me incomodo muito com o hospício, mas o que me aborrece é essa intromissão da polícia na minha vida. De mim para mim, tenho certeza que não sou louco, mas devido ao álcool, misturado com toda a espécie de apreensões que as dificuldades de minha vida material há 6 anos me assoberbam, de quando em quando dou sinais de loucura: deliro”


Trecho de "O Cemitério dos Vivos", de Lima Barreto

 

 

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